domingo, 5 de fevereiro de 2012

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?



Esta Vida é de facto estranha.

Vi este filme, pela primeira vez, ainda não tinha 13 anos, no Ti­voli, quando o Tivoli cheirava a Fox e eu dizia Vinte Century Fox. Talvez por isso, a palavra vintage, que só aprendi muito mais tarde, me esteja visualmente associada ao emblema da casa de Zanuck e me apareça sempre, entre holofotes cruzados, ascendendo e descendendo por espaços efémeros.

Lembro-me que gostei. Lembro-me que gostei muito. Mas nunca imaginei que ia gostar tanto e que tanto, toda a vida, me ia lembrar desta história de amor e de morte. Aos 12-13 anos, os grandes amores são solitários e são coisa de nós com nós, sem mais corpo do que o próprio. Por esse lado, podia, obscuramente, como através de um espelho, desvendar parte importante do criptograma do filme. Mas ainda era muito cedo (e agora talvez seja muito tarde) para desvendar a parte que com essa parte se soma. Aos doze anos, a morte é uma palavra vaga e os fantasmas brincadeiras para sustos a pregar uns aos outros. Precisei de mais trinta anos (trinta e dois, se contar pelos dedos) para saber que o Capitão Daniel Gregg (Rex Harrison) não era fantasma nenhum ou era o fantasma todo. Nesse dia, preguei o imenso poster do filme (o original) na parede que fica na frente da minha secretária na Gulbenkian. Eu já lá não estou, o poster ainda lá está (1)  Gene Tierney (Lucy Muir) em primeiro plano, imensa e vogante, «with that taunt in her smile». Rex Harrison, na sombra, atrás dela, «with that haunt in his kiss». E, no canto direito, em baixo, muito mais pequenino, George Sanders «without a ghost of a chance». «The Flesh ... So Wéak.» «The Spirit ... So Wiliing.» Podia ser ao contrário, mas assim sossega mais. E também por lá se diz, na capa de um livro fechado, que «the film becames the delight of your life.» Não sei se "delight" é a palavra mais própria, mas muita coisa em a minha vida "becamou".



Mrs. Muir - já o disse - é Gene Tierney, nos anos de "Laura", de "Leave Her to Heaven", de "Dragonwyck", nos anos em que mais Gene Tierney foi, mulher patchuli, mulher asfódela. Mr. Muir - quem quer que tenha sido - nunca o conhecemos. Morreu antes do filme co­meçar, de um flato ou de coisa parecida, deixando-lhe a cara e o corpo magníficos envoltos em crepes, como em crepes se envolviam as viúvas inglesas do princípio do século, tempo e país do início da acção. A adivinhar pela família com quem a deixou a viver (sogra e cunhadas), nem ela nem nós perdemos grande coisa. Mas deixou-lhe uma filha de sete anos, papel confiado à criança que então era Natalie Wood.

Para fugir dessa casa londrina, casa de um morto, casa de mortos, decide Mrs. Muir, com enorme escândalo da família, mudar de ares e mudar de mares, levando-se a ela, à filha e à criada (Edna Best) para uma praia sobre o Atlântico, onde, de noite, o vento assobiava nas frinchas de madeiras velhas e onde brenhas de ondas se batiam contra os penhascos. Das muitas casas que lhe mostraram, nenhuma a con­vence. E só quis a casa que não lhe queriam mostrar, porque - dizia­ -se - estava assombrada pela alma penada do Capitão Gregg, que nela se suicidara. O fantasma não assusta Lucy Muir. Um fantasma é o medo que a gente tem dele. E o medo do desejo não é medo de Gene Tierney. Por isso, na casa, ama tudo o que nela ficou do capitão: o óculo na varanda do quarto dele, o bezerro dourado que trouxe de uma das suas muitas viagens, o retrato dele toscamente pintado, fardado de lobo de mar, com um sorriso entre o sarcástico e o diabólico.

Uma mulher em sombra (o luto, os véus) troca um morto por um fantasma. E se o morto a quisera enterrar viva (em Londres) o fantasma vai e vem do mar, atravessa-lhe as janelas e propõe-lhe a mágica dissolução, tão mágica como esse plano, entre todos mágico, em que, na primeira noite passada na velha casa, Lucy acorda e vê o mar através da janela, essa janela que fechara antes e que durante o sono se abriu. E, quando já tem a certeza que ele está ali, Mrs. Muir desencadeia a apa­rição. Levanta-se, vai à cozinha e risca um fósforo para acender o lume. As luzes todas apagam-se, a trovoada e os relâmpagos começam. E é nesse momento que ela diz: «/ know you are there» E Rex Harrison surge diante dela, malcriadissimo como só Rex Harrison soube ser, para uma discussão nada metafísica sobre o direito de qualquer deles à posse exclusiva da casa. Fantasma de desejo, Harrison é também fan­ tasma da violação (de desejo da violação), donde a agressividade irónica das relações entre eles.



 O livro faz Mrs. Muir voltar a Londres. O livro publica-se, não fantomaticamente. E Londres e o livro vão trazer ao filme o terceiro «morto»: o escritorzeco Miles Fairley (George Sanders). Há sempre um momento em que, no reino dos mortos, alguém se volta para trás, à busca de uma imagem mais "real". Gene Tierney inicia o seu terceiro Iove affair, com a fraca réplica do capitão, que é a presença sedutora de George Sanders. O fantasma começa por tentar expulsá-lo. Depois, rende-se à vida, no seu segundo "suicídio". E é enquanto ela dorme («Ah! Comme Gene Tierney est belle quand elle dort!») que Rex Harrison se vem despedir dela, na mais bela sequência de sempre da história de Hollywood. «Oh, Lucia» (a voz de Harrison, a música de Herrmann) «you are so little and so lovely» Depois, recita-lhe Keats (Ode to a Nightingale) e fala-lhe de como teria gostado de a levar a ver o sol da meia-noite, os fiordes da Noruega. «What you have missed, Lucia, by being born too late to traveI the Seven Seas with me! And what I've missed too» Depois, ele que, antes, num momento em que ela demasiado se aproximou dele, lhe dissera rudemente: «Keep your dis­tances, madam», inclina-se para ela num quase beijo que, de novo, interrompe. E afasta-se para a janela e para o óculo, que nunca mais vai poder ver o invisível. No sol da manhã seguinte, o capitão desapareceu da vida e da casa de Lucy Muir, que só o capitão tratava por Lucia, como se ela viesse de Lammermoor.

Mas com ele - pouco depois dele - desaparece também George Sanders. Quando Gene Tierney o vem buscar a terra firme (a casa dele) descobre que esse outro "sonho" ocultava a dura realidade de uma banal mentira e de uma banal mediocridade (Sanders era casado e a sua história uma história contada a muitas e passada com muitas). Daí para diante não há mais homens - vivos ou mortos - na vida de Mrs. Muir.

                          


E o tempo começa a passar muito depressa. Depressa envelhece Mrs. Muir. Depressa a filha cresce e a filha casa, para só então contar à mãe que ela também, em criança, vira o fantasma. E depressa chega uma tarde (um fim de tarde) em que Mrs. Muir, de cabelos brancos, se sente muito cansada e pede à criada um copo de leite. Não chega a bebê-lo. O copo escorrega-lhe das mãos e Mrs. Muir morre, agasalhada, na cadeira em frente ao mar em que sempre se sentou. A imagem des­dobra-se. E os dois fantasmas - o dele e o dela, como foram quando eram - ficam a olhar para a velha morta. Depois, descem as escadas de mãos dadas e depois abrem a porta e desaparecem, entre a música, no meio da névoa.

«I have been half in love with easeful Death ... / Was it a vision or a waking dream?» (Keats).

De todas as artes, o cinema é a mais onírica. E essa dimensão nunca existiu tanto como nos filmes "germanizados" ou "germanizantes" feitos em Hollywood nos forties. Joseph L. Mankiewicz (1909-1993), o realizador de “The Ghost and Mrs. Muir” e que só agora nomeio, não era alemão, mas descendia de alemães e na Alemanha se formou. Toda a sua vida procurou o cinema total. Apesar de muitas outras obras­ -primas, nunca esteve tão perto como neste filme de que disse recordar sobretudo «o vento, o mar e a procura de qualquer coisa de diferente». «E as decepções que se tem»

Não há filme mais triste. Não há filme mais bonito. Deixem-me ficar ao pé da mulher que nasceu tarde demais para atravessar os sete mares e para ver o sol da meia-noite. Deixem-me ficar ao pé do capitão que morreu cedo demais para a poder beijar ou para poder deitar-se com ela. Ou deixem-me acreditar que não há cedo nem tarde e que o único amor que existe - porque é o único em que acreditamos que existe­ é o amor surreal, esse que Rex Harrison e Gene Tierney encontram no final, quando desaparecem na névoa, atravessada a última porta.

(1)   Agora, já não está. Mas, embora empalidecido pelo sol (quem é que se lembra de pôr fantasmas ao sol?) continua no meu gabinete. Na Cinemateca.

João Bénard da Costa em  Os Filmes da Minha Vida, 2º volume, Assírio & Alvim,  Maio 2007

1 comentário:

Miguel disse...

Belo "Serviço Público" de Sammy, que espero possa convencer muita gente a deslocar-se, amanhã, à Cinemateca. Não será o meu caso, porque 19H00 para quem trabalha em Oeiras só para coisa absolutamente imprescindível, o que não será bem o caso, tantas foram já as vezes que já revi este filme.

Nem sempre sou um incondicional dos "Filmes da Vida" de JBC, mas este é absolutamente inquestionável.

Lembro-me como se fosse hoje da primeira vez que o vi, no referido Ciclo de Cinema Americano, há mais de 30 anos, no meu lugar "cativo" na primeira fila da Gulbenkian.

Do nó da garganta e do olhar embaciado (a beleza cega, como diria o outro...) com aquela longa cena final - que Sammy documenta em fotografia - antes de acordar para a realidade com o barulho dos aplausos da assistência...

Toda a gente fala em Gene Tierney neste filme, e não serei eu quem os irá contrariar.

Mas confesso que sempre me emociona muito ver a pequenita Natalie Wood, lá naquelas águas onde, muitos anos mais tarde, iria desaparecer para sempre...

Um abraço!