A literatura não diz nada aos seres humanos satisfeitos com a sua sorte, a quem agrada a vida tal como a vivem. Ela é o alimento de espíritos indóceis e propagadora de inconformismo, um refúgio para aqueles a quem sobra ou falta algo, na vida, para ser infeliz, para não se sentir incompleto, sem realizar as suas aspirações. Sair a cavalgar junto do esquálido Rocinante e do seu desgovernado ginete pelos descampados de La Mancha, percorrer os mares atrás da baleia branca com o capitão Ahab, engolirmos o arsénico com Enmma Bovary ou transformarmo-nos num insecto com Gregor Samsa é uma maneira astuta que inventámos com o fim de nos desagravarmos a nós próprios das ofensas e imposições desta vida injusta que nos obriga a ser sempre os mesmos, quando queríamos ser muitos, tantos quantos seriam necessários para aplacar os ardentes desejos de que estamos possuídos.
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