Povoa-se esta noite
de muito para dizer
há mesmo
no silêncio
uma charrua
a abrir a terra
(talvez um astro
talvez uma onda
ou talvez
nada mais
do que uma lágrima)
e ouvem-se,
tão de leve
que parecem
passos de ave
na areia,
ouvem-se
gestos no inquieto chão
de uma velha memória.
Mas, por mim, hoje
não posso dar-te
nem
uma palavra. Olha,
se lá tivesse estado
talvez também cantasse
(digamos: murmurasse)
um verso
ou um refrão
do tempo
em que a noite lá fora
era de gelo.
Hoje, porém,
nem
uma palavra ao menos
te direi.
E palavras há tantas
que
é mesmo aí que está
o mais difícil.
Não é que eu tenha
alguma coisa contra
o barro
do meu ofício..
Com as palavras
se ilumina o mundo
e se levanta o pão:
sabes tu isso bem
tu que as cantaste.
Contigo, ao pé de ti,
ou só de ver-te
certas palavras logo
amadurecem de novo
amadurecem
caem,
pesadas de sentido,
da grande árvore
comida pelo silêncio
que os falcões da electrónica
instauraram.
Mas de mim nem sequer
terás
nem
uma palavras certa
nem
uma palavra de violeta
nem
uma palavara supérflua
isso: nem mesmo
as palavras supérfluas
que são em poesia
as mais preciosas
percorrerei
todo o espaço
desta respiração
(desta transpiração)
quotidiana
e vigiarei atentamente
para que nem uma palavra
vá
dizer seja o que for,
certa
contente e
de si tão convencida
que já nem saiba onde
ela se principia
e tu acabas.
Farei é certo algum esforço
pra não dizer, digamos
fraternal
pão de mesa comum
canção
Abril
coragem
o que é preciso
é reunir a malta
outras coisas assim
mas nem essas
deixarei
que tas diga
ficarei
sem dever nada
a mim próprio
certo
de que as palavras
que se dzem
em noites
como esta
correm o perigo de
não ter a bastante
direcção.
Depois, palavras
“dirigidas a”
não são propriamente
o meu género.
Meu género era ver-te
à minha mesa
ou ouvir-te modular
(modelar?)
uma canção que andava
em ti buscando
forma.
Ou ver-te recriar
o ritmo
dos cavadores de Paredes
e dos operários
partindo pedra
não sei onde
(oiço-te a bater
com os nós dos dedos
no tampo da mesa)
Assim no meu silêncio
é que te vejo
e que te falo
Palavras? Não.
Palavras nem
uma; nem
que elas me fiquem
no coração
doendo
e que sofram
que sofram
as palavras também
a vez delas havia
de chegar.
Elas, elas aqui
hoje é que não,
hoje não deixarei
que se perturbe
esta noite,
nem sob o álibi
das formas de dizer
com as palavras.
Sem palavras um abraço
sem palavras um beijo
sem palavras portanto
esta carta
este canto.
Mário Castrim, Canal da Crítica, Diário de Lisboa, 1 de Março de 1983.
Nota do editor:
Esta carta de Mário Castrim foi publicada no dia a seguir à Festa da Fraternidade a José Afonso, realizada no Coliseu no dia 29 de Janeiro de 1983.
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