“Tudo nesta vida me lembra um filme;
é qualquer coisa que não consigo evitar”
(Jonathan Coe – “O Sr.
Wilder & Eu”
Ainda bem que Jonathan Coe me compreende…
Não apenas lembrar um filme, mas também todo o
contexto que rodeou a sua visão.
Não me basta recordar
que foi há 50 anos que vi, pela primeira vez, o “King Kong” numa sessão da
meia-noite do Cinearte. Vem-me também à memória, de imediato, tudo o que se
passou antes, durante e depois do filme, e acima de tudo uma voz que passou a
noite toda a soprar-me ao ouvido “morrer de Amor como o King-Kong”,
frase que sei muito bem ter sido roubada a Eduardo Guerra Carneiro, o que, para
o caso, não faz qualquer diferença.
Por isso, a conversa
de hoje não será sobre filmes, mas sim acerca de tudo quanto os rodeou.
Muito cedo na minha
vida me dei conta de que não haveria maior prazer que ver-me sozinho no escuro
de uma sala de Cinema.
Quando passei, com
sucesso, nos exames do então 2º Ano Liceal e tive direito a uma prenda
especial, pedi ao meu Pai que me desse dinheiro para ir uma vez por semana ao
cinema durante as férias de Verão.
E assim foi… Um
autêntico festim!
Ainda estava muito
longe de ser o “cinéfilo” que sou hoje, mas ver filmes antigos a preto e branco
era coisa que não me assustava nada. Estava habituado a vê-los na televisão…
Lembro-me de ter ido
ao Condes ver, em reposição, “A Relíquia Macabra”, muito antes de saber quem
era John Huston, Humphrey Bogart, Sidney Greenstreet ou Peter Lore. Ou, no
Tivoli, “Os Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras”, esse bastante mais
recente, em ecrã largo e a cores.
Mas onde ia mais
vezes era ao Avis, que ficava mais perto de minha casa. Lembro-me de ter visto
aí (e só muito mais tarde os pude identificar…) “A Torre de Londres”, do Roger
Corman e o “Inferno Verde”, do James Whale, que hoje já se podem considerar
“clássicos”.
Em boa verdade, não
fazia nem sabia fazer grande seleção e ia ver o que estivesse disponível para a
minha idade, já que o meu maior prazer era o de me sentir sozinho naquelas
salas escuras defronte de um ecrã de cinema.
Antes disso ia ao
Cinema muito raramente, e sempre acompanhado.
A primeira vez com a
minha Prima Lena, como já contei.
A segunda foi
com o meu irmão José Carlos, também no Monumental e também para ver um filme de
Walt Disney, “A Branca de Neve e os Sete Anões”.
Foi nessa ocasião que
se passou uma célebre cena da qual me recordo perfeitamente e com a qual tramei
o meu Querido irmão.
Essa história, que
tantas vezes recordei na presença dele, deixem-me contá-la uma vez mais, como
se ele permanecesse aqui a meu lado a olhar-me de novo com aquele ar de censura
que sempre punha no rosto quando eu falava dela.
Tínhamos ficado no balcão e a meu lado ficara sentada uma rapariga mais ou menos da idade do meu irmão, que, por sua vez, estava a acompanhar um miúdo que também deveria ter a minha idade.
O certo é que eu, mauzinho, regressei primeiro do que ele à sala, como tínhamos combinado, mas fui sentar-me de novo no meu preciso lugar, ou seja, ao lado da menina. Pouco depois entra o meu irmão, vê que eu não mudei de lugar, fulmina-me com o olhar e vai sentar-se no seu lugar, já que não havia outro… Quando as luzes se começaram a apagar e o pano a subir, eu levanto-me no meu lugar, viro-me para o meu irmão e digo-lhe bem alto: “Zé Carlos, tu que querias ficar ao lado desta menina podes passar para aqui…!”. Não deu para ver porque, entretanto, as luzes se apagaram e o filme recomeçou, mas imagino a reação dele e da menina…
No final do filme o
meu irmão, certamente envergonhado, esperou que a menina e o miúdo saíssem
primeiro e deu-me um tremendo raspanete, jurando que era a última vez que vinha
comigo ao cinema.
Mentira, porque uns tempos depois levou-me ao “Império” ver “Há Festa na Aldeia” e contribuir, em muito, para a minha eterna devoção ao Jacques Tati…
Mas porque fui eu
fazer, com tão tenra idade, aquela maldade ao meu irmão…? É um verdadeiro
enigma… Manifestação precoce de uma característica que alguns amigos, ainda
hoje, persistem em me apontar frequentemente, sobretudo quando lhes dou algumas
bicadas acerca dos atuais grandes sucessos desportivos do seu Benfica: a de ser
um “cabrãozinho pequenino”…?
Mas a verdade é que
depois do Jacques Tati não me recordo de ter voltado a ir ao cinema com o meu
irmão Zé Carlos.
Sozinho com o meu
irmão Jorge nunca fui e apenas me recordo de ter ido uma vez com ele e com os
outros dois irmãos ao Roma, ver “Mocidade em Férias”, com o Cliff Richard. Isto
para não falar daquelas duas ou três vezes em que, no Verão de Paço d’Arcos, os
meus irmãos terão sido obrigados a levarem-me com eles ao cinema.
Com a minha irmã fui
muitas vezes, mas bastante mais tarde, entre os meus 14 e 16 anos, quando
ela, já empregada, me levava ao Domingo às sessões duplas do Paris, ali para as
bandas da Estrela. Gloriosas tardes essas em que eu tinha pretexto para me
baldar ao “passeio dos tristes” com os meus Pais, ver dois filmes e ainda comer
um gelado ou beber um Sumol de ananás. A chatice é que tínhamos de ir e vir de
autocarro e só às vezes, no regresso, vínhamos de táxi, mas apenas quando
corríamos o sério risco de desrespeitar o sagrado dever de estarmos sentados à
mesa às 20h00 para jantar, de mãozinhas devidamente lavadas.
Mas que magníficos
filmes vi eu nesses Domingos à tarde, na companhia da minha Querida irmã Rosa
Maria! Entre tantos outros, a primeira versão de “O Grande Mestre do Crime”, “A
Festa”, com o Peter Sellers, “Bullit”, com o Steve McQueen a voar nas
colinas de São Francisco, “O Passageiro da Chuva”, do René Clément, e muitos
outros policiais franceses dos anos 60, que à época estavam na moda.
Na altura não havia
vídeos e, muito menos, DVD’s, e os filmes modernos só passavam na televisão
muitos anos depois. Mas era normal passarem nesses “cinemas de reprise” poucos
meses após a sua estreia.
Mas porque razão
íamos nós tão longe ao Paris, quando tínhamos, bastante mais perto de nossa
casa, idênticas “salas de reprise”, como era o caso do “Liz” ou do “Imperial”…?
É um enigma para mim, mas imagino que talvez o meu bom Pai tivesse dito à minha
Querida irmã que meninas bem comportadas não frequentavam aquelas bandas da
Almirante Reis…
Com o meu Pai não me
lembro de ter ido uma única vez ao cinema. Aliás, guardo na memória que vi o
meu Pai ir uma única vez ao cinema e na companhia dos meus irmãos, ver um
documentário que então era muito badalado e se chamava ”O Mundo Cão”. E a
verdade é que o meu Pai só se terá decidido a ir porque lhe tinham contado que
havia uma cena em que o Nuno da Salvação Barreto, que então capitaneava o Grupo
de Forcados Amadores de Lisboa, pegava pelos cornos um touro em pontas…
Com a minha Mãe
lembro-me de ter ido, apenas, duas vezes ao cinema.
A primeira vez foi
para ver “Música no Coração”.
Para os espectadores
de cinema de hoje, em que os filmes se aguentam muito pouco tempo em exibição
comercial e num ápice saltam para os ecrãs de televisão e para o DVD, em que há
filmes que nem sequer para o “grande ecrã” vão e são produzidos e lançados
diretamente nas grandes plataformas de “streaming”, será muito difícil perceber
um fenómeno como foi, em Portugal, “Música no Coração”.
Em Lisboa o filme
estreou-se no “Tivoli” em Janeiro de 1966, tinha eu acabado de fazer 12 anos e,
se a memória não me falha, manteve-se em exibição consecutiva durante 9 meses.
Impensável nos dias de hoje…
Não se falava noutra
coisa. Sobretudo na “conversa das Senhoras”…
Por uma qualquer
razão, a minha mãe (que raramente ia ao cinema, diga-se de passagem…) terá
perdido a oportunidade de ir ver o filme com uma das suas amigas, deixou-se
arrastar e quando, finalmente, se decidiu, eu era a única pessoa que ela tinha
mais à mão, já que sozinha jamais se atreveria a ir.
Eu devo ter torcido o
nariz, porque já na altura devia ter alguns laivos de pretensiosismo e pensado
que filme tão badalado pelas “Senhoras” não deveria ser, certamente, flor que
se cheirasse. Mas como ir ver um filme à borla e lanchar uma bola de
Berlim e um “Sumol” de ananás também não era coisa que se recusasse, lá me
disponibilizei a ir sem grande regateio. A não ser essa tal exigência do
lanche, claro está…
Mas não adivinharia
que a cena iria ter uma preparação prévia…
Segundo ela então me
contou, a minha Mãe fora uma vez ao cinema com o meu irmão Zé Carlos, quando
ele ainda era miúdo, ver um dos filmes da “Sissi”. O primeiro filme dessa
trilogia estreou-se em Portugal em Outubro de 1956, pelo que o meu Querido
irmão teria, no mínimo, 12 anos acabadinhos de fazer.
E parece que numa
cena de beijos o meu Querido irmão, que tinha fama de malandreco, terá armado
um escarcéu de todo o tamanho, assobiando, batendo palmas, largando “bocas”, eu
sei lá, deixando a minha pobre Mãe passar uma autêntica vergonha em plena sala
de cinema.
Eram tempos em que
ainda não tinha chegado a televisão e a miudagem ainda não estava habituada a
cenas dessas…
Mas a minha Mãe terá
ficado de tal maneira traumatizada com essa fita do meu irmão que que a
primeira coisa que fez, quando se decidiu que iriamos os dois ao cinema, foi
fazer-lhe jurar que me portaria convenientemente se no filme houvesse alguma
cena dessa natureza.
Ofendido, ter-lhe-ei
respondido que já era um espectador de cinema muito batido e que cenas dessas
papava eu todos os dias ao pequeno-almoço…
Agora já não me
recordo, mas é altamente provável que, durante o filme, haja pelo menos uma
cena de decente beijocada entre a perceptora das crianças e o Capitão Von
Trapp.
E também não quero
estar aqui a inventar, mas é muito provável que, a existir essa cena, a minha
Mãe e eu tenhamos trocado o olhar e eu lhe tenha dado uma piscadela de olhos,
em sinal de cumplicidade.
Depois disso, só
voltei ao cinema na companhia da minha Mãe aí uns 15 anos depois, para lhe
apresentar a namorada com quem me preparava para casar. Foi no Condes, para ver
o “Rebeca” do Hithcock, filme de que ela gostava muito e do qual me falava
frequentemente.
Constato agora que
isto já vai muito longo e que, em boa verdade, eu já dei volta às minhas
memórias cinéfilas de infância e já vos contei tudo quanto vos tinha para
contar…
Mas apercebo-me que tenho de arranjar algum pretexto para vos ter vindo aqui massacrar com toda esta lenga-lenga. E, uma vez mais, recordações de viagens é o que está mais à mão…
Não foi a pensar na minha
Mãe nem em “Música no Coração” que visitei, por duas vezes, Saltzburgo, na
Áustria, mas também não se pode visitar essa cidade, nem toda essa magnífica
região dos Lagos que lhe é tão próxima, sem que sejamos invadidos pela memória
desse filme.
Os miúdos na ponte
com a Fortaleza de Hohensaltzburg ao fundo…
Os miúdos a dançarem
no Schloss Mirabell , defronte da casa amarela onde viveu Mozart…
Os miúdos no comboio
a vapor, pela montanha acima…
Julie Andrews a
esvoaçar no alto da montanha…
Mas se é verdade que
não fui a Saltzburg de propósito por isso, também é certo que não deixei de
levar bem viva no coração e no olhar a memória da minha Querida Mãe. O que ela
gostou das paisagens desse filme e o que ela não daria para ter ido oportunidade
de as ver pessoalmente, ela – coitada…! - que de viagens ao estrangeiro a única
coisa que levou desta vida foi fazer “tricot” nas diversas cidades de Espanha
em cujas praças de toiros o meu pai poisava o seu traseiro.
E ainda hoje, ao ver
uma cena de beijos, por vezes me recordo da minha Mãe. Dou-lhe uma piscadela de
olho e tenho a certeza que, esteja lá ela onde estiver, não deixará de me
responder com um sorriso…
Texto e Fotografias de Luís Miguel Mira
2 comentários:
Este belíssimo texto do Luís Mira deixou-me, sei lá -nem sei explicar...angustiante nostalgia.
Não me lembro da primeira vez que fui ao cinema mas sei que não foi com a minha mãe, nem com o meu pai que, curiosamente, tinha, ele e um seu sócio, um cinema ambulante e andavam pelas aldeias do Alentejo (onde nasci) a passar os filmes que tinha (em bobinas). Lembro-me de ele me contar várias peripécias que nesta "aventura" lhes acontecia. O meu pai falava pouco comigo (como era comum na altura) e muito menos desta sua época (ainda solteiro), mas lembro-me de ele falar num filme que gostava muito (O FARRAPO HUMANO) e falava-me dos seus dois actores preferidos (Spencer Tracy e Charles Laughton). Esta conversa tinha aqui pano para mangas. Serve também para homenagear as mulheres daquela altura quais escravas sabiam lá o que era ir ao cinema...pelo menos a minha mãe e as dos meus amigos da altura.
Caro Seve,
Um Pai exibidor de cinema ambulante é um privilégio...!
"O Farrapo Humano", do Billy Wilder, é um grande filme, mas jamais pensaria nele para o recomendar a uma criança, a não ser que quisesse precaver problemas futuros...!
Tracy e Laughton, dois dos maiores de sempre do cinema americano. Difícil escolher um só filme, mas de Tracy vem-me logo à memória o maneta de "A Conspiração do Silêncio / Bad Day At Black Rock" . De Laugthon o realizador de um dos mais belos filmes do cinema "tout court", "A Noite do Caçador"
Obrigado pelo seu comentário.
LM
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