segunda-feira, 26 de março de 2018

AGORA SÃO SÓ PEDAGOGIAS?NÃO TEM ESCRITO NADA?


Ensinar como simples ganha-pão é repugnante. E era o que então fazia. Num colegiozinho de má morte, ao Bairro Alto, onde o não ter o curso concluído nem possuir qualquer diploma para o ofício permitia ao director pagar-me o que bem lhe parecia. Um director de truz, bigodeira de pontas reviradas, bata branca, que também dava a sua au­la, sim senhor, mas se ocupava muito mais com vender aos cachopos cadernos, lápis, rebuçados... Artigo 1.° (pensava eu, imaginando leis fundamen­tais que deveria haver): é expressamente proibida qualquer forma de negócio em matéria de ensino. Mas só mais tarde sentiria a grande revelação: en­sinar de verdade (forma excelsa de comunicação), reaprender sempre a ensinar, ensinar a ensinar. Como um profissional. Indispensável. Mas também como uma dádiva feliz e inteira, exactamente igual à que exige o acto de criar seja o que for. Depois disso, raras vezes ensinei com sacrifício. Não direi «nunca». Mentiria. O normal era, contudo, fazê-lo com verdadeira entrega interior e algum êxito, pa­rece. Desde a escola do ensino técnico onde verda­deiramente assentei praça (ainda aí só quase ganha--pão, mas já só quase), ao trabalhoso e abençoado estágio, interrompido durante dezoito anos (malhas que o Império tecia...), aos longos anos no parti­cular — não tinha outra saída —, ao ensino secun­dário oficial, em vários dos seus escalões, à meto­dologia, à Comissão de Estudo da Reforma Educa­tiva, a que presidi, logo após o 25 de Abril (era ainda ensinar, era ainda paixão), enfim, à Faculda­de, onde a história acabou quando tinha de acabar.
Nunca consegui convencer deste prazer e sobretudo da sua utilidade os escritores meus amigos. Eles viam na maneira absorvente como ao ensino me entregava a mais indesculpável das infidelida­des. Que assim não podia ser. Que eu não nascera «para aquilo». Nascera «para mais», pensavam eles. E enchia-me de tristeza que não pudessem perceber. O Ferreira de Castro, por exemplo, quan­do, no Verão, estando ele em Sintra e eu em Galamares, nos encontrávamos com bastante frequên­cia: «Cuidado! Não deixe passar a idade. O tempo voa...» Mas os «piores» eram o Carlos de Oliveira, o José Gomes Ferreira, o Cochofel. Porque com estes estava eu todos os dias, tinha-os ali à perna. O Carlos —olha quem! — nem pensar em desar­mar. «Então agora são só pedagogias?» Irónico, implacável. E logo sério, com a amizade do costu­me: «Mas não tem escrito nada? Mesmo nada?» Como se o mundo fosse acabar por isso. Já publi­cara aliás grande número dos meus livros. E men­tia para mudar de assunto. Mas não mentia muito. Na verdade, escrever era o meu vício. Andava às voltas, havia perto de três anos, com o Não há Morte nem Princípio, cujo original ele, a seu tem­po, leria com o empenho que só os amigos sabem o que é. Com o mesmo com que eu lia os dele, cheios ainda de emendas, papelinhos colados, a in­satisfação em carne viva.

Mário Dionísio em Autobiografia

Legenda: retrato de Carlos de Oliveira da autoria de Mário Dionísio

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