sábado, 31 de março de 2018

OLHAR AS CAPAS




Novembro
Cadernos de Poesia

Poesias de António-Franco Alexandre, Fernando Assis Pacheco, Herberto Helder,
                   José Gomes Ferreira e Nuno Júdice

Coordenação de Casimiro de Brito e Gastão Cruz
Capa: Manuel Baptista
Edição dos Coordenadores, Lisboa, Novembro de 1972

Minha Pequenas Dúvidas e a Guerra


                               1

minhas pequenas dúvidas estabelecem
habitação violenta. furam pelos ossos,
espalham os dedos em volta, os caules
aquecidos do vento, roem
lentamente os pátios inertes,
instalam a dobra azul dos cotovelos,
resistem. Têm, ambígua, a elegância
elementar da água. Dobram
as espigas nos dentes,
conhecem o nervo
estendido no céu.
                            mexem
os dedos na gaveta, o calcário
das costas, vigiam com cuidado
as vísceras dos galos, a variável
rotação dos planetas; enquanto a galáxia
gira em si mesma intensamente inútil.
minhas pequenas dúvidas multiplicam os dentes,
decoram marx, passeiam o silêncio
pela trela. resistem,
furam pelos dedos, as vísceras
intensas do vento, estabelecem
cotovelos completos.
                                   têm
a violência constante dos ossos,
resistem, dobram lentamente
a trela das estrelas,
ferem as vísceras
inertes do silêncio, espalham
em volta a demasia oblíqua
das espigas nos pulsos. lêem
o jornal misturado à saliva, aprendem
sem ruído as máquinas da pele:
minhas pequenas dúvidas resistem
o calcário dos nervos,
                             estabelecem
habitação inútil,
dobram os ossos ao calor dos pátios.


                          2

 enquanto o coração se prende às cordas
cruzadas do silêncio, esmago
entre os dedos uma gota estreita de noite,
fecho os olhos ao gás das granadas em voo,
escrevo, rumino, peso as estrelas
ao fundo da garganta moída,
buscando entre polícias de dentes aos ombros
uma mancha de vento que nos sirva de céu
e um corpo que permita
o repouso velocíssimo do esperma.
                                          porque, entendes,
minhas pequenas dúvidas explodem
no ar balões de espiga, cotovelos
oblíquos, quando voam no pátio
as curvas variáveis da matraca.
uma ternura, entendes, uma ternura de ombros,
de cabelos completos, de nervos na água,
de dedos constantes ao calor dos ossos,
enquanto o coração se agarra à noite espessa
ou me conhece um caule de elegância nos pulsos.
                                    ternura, entendes,
é ter perdido voz
a granada que voa, pesada como
esta palavra: ternura, ao cair sobre a trela
elementar dos dias.
são ombros, entendes, um nervo cruzado,
a doce rotação
do sangue nos ossos,
o cansaço dos galos quando limpo
o suor anguloso das axilas,
um corpo respirado por dentro, junto à boca.


                                   3

minhas pequenas dúvidas embatem contra o chão
da gasolina ardida, moram
dentro da trela,
leram platão, arrastaram carroças,
cortaram de manhã as vísceras da água,
hesitam na carícia do corpo que se estende
e dobra sobre os ossos, como
uma fonte.
minhas pequenas dúvidas enumeram os dentes,
conhecem hegel, ultrapassam
oblíquamente os pulsos, procuram
habitação inerte.
minhas pequenas dúvidas pequenas
aconchegam no bolso um rato amargo,
vestem à pressa os ossos, aguardam
a rotação inútil dos planetas,
vigiam as estrelas moídas na garganta

                                     4

pornogràficamente acordo
com o sexo dentro da boca.
minhas pequenas dúvidas acendem luzes,
arames, fazem vibrar alarmes,
estabelecem gritos cruzados nos ossos,
abençoam granadas de dentro da janela,
acordam a polícia do seu sono oblíquo.
                              estabelecem
habitação de galos no silêncio.
minhas pequenas dúvidas arrancam os dedos
do chão, cortam as árvores,
alcatroam a alma,
                               proíbem
movimentos de mais de duas mãos.
avisaram de noite a presidência.
ferem a água, estabelecem
vísceras variáveis,
aconchegam um rato no calcário.
                                   pornograficamente
adormeço com o sexo dentro do bolso.
minhas pequenas dúvidas pequenas
abrigam-se do voo nas axilas do vento.

                                      5

minhas pequenas dúvidas não morrem. sei-as
dentro dos galos, vigiando a carroça
elementar  dos ossos,
agarradas ao nervo do silêncio.
resistem. furam pelos dentes,
espalham em torno o vento seco,
os caules, estabelecem
cotovelos inertes.

                     enquanto uma guerra
se prende às cordas
constantes da ternura,
minhas pequenas dúvidas desatam
os nós dentro da boca

                            6

madrugada, as lanternas apitam
a corrida dos dentes pela rua,
estamos contando os dedos que nos restam.
                                   não sei
se são de gás ou raiva
as lágrimas nos pulsos.
                                   ajudo-te
a despir, notando as cicatrizes
e algum piolho oculto.
minhas pequenas dúvidas cansadas
adormecem num bolso, e estamos nus.
                                       abraço-te
devagarinho, com as costas dos ossos,
dobrando os cotovelos na gaveta.

minhas pequenas dúvidas pequenas
sussurram junto ao chão,
movimentam espigas
sobre os nervos,
desejam vigilância.
                              minhas pequenas
dúvidas, minhas trelas miúdas,
sufocam numa névoa de granadas.
                   pouso
as asas angulosas no cimento.
dói-me na mão direita
uma falta de dedos, uma falta
de rios.
            pornogràficamente
adormecemos.

(Poema de António-Franco Alexandre)

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