terça-feira, 20 de março de 2018

TERRA RIQUÍSSIMA EM POBRES


Que será, interroga-se Ricardo Reis, mas não se atreve a fazer a pergunta em voz alta, acha que onde tanta gente se reuniu por uma razão de todos conhecida, não é lícito, e talvez seja impróprio, ou indelicado, manifestar ignorância, podiam as pessoas ficar ofendidas, nunca há a certeza de como vai reagir a sensibilidade dos outros, e como teríamos tal certeza, se a nossa própria sensibilidade se comporta de maneira tantas vezes imprevisível para nós que julgávamos conhecê-la. Ricardo Reis alcançou o meio da rua, está defronte da entrada do grande prédio do jornal O Século, o de maior expansão e circulação, a multidão alarga-se, mais folgada, pela meia-laranja que com ele entesta, respira-se melhor, só agora Ricardo R eis deu por que vinha a reter a respiração para não sentir o mau cheiro, ainda há quem diga que os pretos fedem, o cheiro do preto é um cheiro de animal selvagem, não este odor de cebola, alho e suor recozida, de roupas raro mudadas, de corpos sem banho ou só no dia de ir ao médico, qualquer pituitária medianamente delicada se teria ofendido na provação deste trânsito. A entrada estão dois polícias, aqui perto outros dois que disciplinam o acesso, a um deles vai Ricardo Reis perguntar, Que ajuntamento é este, senhor guarda, e o agente de autoridade responde com deferência, vê-se logo que o perguntador está aqui por um acaso, É o bodo do Século, Mas é uma multidão, Saiba vossa senhoria que se calculam em mais de mil os contemplados, Tudo gente pobre, Sim senhor, tudo gente pobre, dos pátios e barracas, Tantos, E não estão aqui todos, Claro, mas assim todos juntos, ao bodo, faz impressão, A mim não, já estou habituado, E o que é que recebem, A cada pobre calha dez escudos, Dez escudos, É verdade, dez escudos, e os garotos levam agasalhos, e brinquedos, e livros de leitura, Por causa da instrução, Sim senhor, por causa da instrução, Dez escudos não dá para muito, Sempre é melhor que nada, Lá isso é verdade, Há quem esteja o ano inteiro à espera do bodo, deste e dos outros, olhe que não falta quem passe o tempo a correr de bodo para bodo, à colheita, o piar é quando aparecem em sítios onde não são conhecidos, outros bairros, outras paróquias, outras beneficências, os pobres de lá nem os deixam chegar-se, cada pobre é fiscal doutro pobre, Caso triste, Triste será, mas é bem feito, para aprenderem a não ser aproveitadores, Muito obrigado pelas suas informações, senhor guarda, Às ordens de vossa senhoria, passe vossa senhoria por aqui, e, tendo dito, o polícia avançou três passos, de braços abertos, como quem enxota galinhas para a capoeira, Vamos lá, quietos, não queiram que trabalhe o sabre. com estas persuasivas palavras a multidão acomodou-se, as mulheres murmurando como é costume seu, os homens fazendo de contas que não tinham ouvido, os garotos a pensar no brinquedo, será carrinho, será ciclista, será boneco de celulóide, por estes dariam camisola e livro de leitura. Ricardo Reis subiu a rampa da Calçada dos Caetanos, dali podia apreciar o ajuntamento quase à vol d'oiseau, voando baixo o pássaro, mais de mil, o polícia calculara bem, terra riquíssima em pobres, queira Deus que nunca se extinga a caridade para que não venha a acabar-se a pobreza, esta gente de xale e lenço, de surrobecos remendados, de cotins com fundilhos doutro pano, de alpargatas, tantos descalços, e sendo as cores tão diversas, todas juntas fazem uma nódoa parda, negra, de lodo mal cheiroso, como a vasa do Caís do Sodré. Ali estão, e estarão, à espera de que chegue a sua vez, horas e horas de pé, alguns desde a madrugada, as mães segurando ao colo os filhos pequenos, dando de mamar aos da sazão, os pais conversando uns com os outros em conversas de homens, os velhos calados e sombrios, mal seguros nas pernas, babam-se, dia de bodo é o único em que se lhes não deseja a morte, por causa do prejuízo que seria. E há febres por aí, tosses, umas garrafinhas de aguardente que ajudam a passar o tempo e espairecem do frio. Se volta a chover, apanham-na toda, daqui ninguém arreda.

José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis


Legenda Imagem tirada daqui

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