segunda-feira, 5 de março de 2018

INDO NO RIO DAS COISAS


Hoje é o último dia do ano. Em todo o mundo que este calendário rege andam as pessoas entretidas a debater consigo mesmas as acções que tencionam praticar no ano que entra, jurando que vão ser rectas, justas e equânimes, que da sua emendada boca não voltará a sair uma palavra má, uma mentira, uma insídia, ainda que as merecesse o inimigo, claro que é das pessoas vulgares que estamos falando, as outras, as de excepção, as incomuns, regulam-se por razões próprias para serem e fazerem o contrário sempre que lhes apeteça ou aproveite, essas são as que nunca se deixam iludir, chegam a rir-se de nós e das boas intenções que mostramos, mas, enfim, vamos aprendendo com a experiência, logo nos primeiros dias de Janeiro, teremos esquecido metade do que havíamos prometido, e, tendo esquecido tanto, não há realmente motivo para cumprir o resto, é como um castelo de cartas, se já lhe faltam as obras superiores, melhor é que caia tudo e se confundam os naipes. Por isso é duvidoso ter-se despedido Cristo da vida com as palavras da escritura, as de Mateus e Marcos, Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste, ou as de Lucas, Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito, ou as de João, Tudo está cumprido, o que Cristo disse foi, palavra de honra, qualquer pessoa popular sabe que esta é a verdade, Adeus, mundo, cada vez pior. Mas os deuses de Ricardo Reis são outros, silenciadas entidades que nos olham indiferentes, para quem o mal e o bem são menos que palavras, por não as dizerem eles nunca, e como as diriam, se mesmo entre o bem e o mal não sabem distinguir, indo como nós vamos no rio das coisas, só deles distintos por que lhes chamamos deuses e às vezes acreditamos. Esta lição nos foi dada para que não nos afadiguemos a jurar novas e melhores intenções para o ano que vem, por elas não nos julgarão os deuses, pelas obras também não, só juízes humanos ousam julgar, os deuses nunca, porque se supões saberem tudo, salvo se tudo isto é falso, se justamente a verdade última dos deuses é nada saberem, se justamente não é sua ocupação única esquecerem em cada momento o que o que em cada momento lhes vão ensinando os actos dos homens, os bons como os maus, iguais derradeiramente para os deuses, porque inúteis lhes são. Não digamos, Amanhã farei, porque o mais certo é estarmos cansados amanhã, digamos antes, Depois de amanhã, sempre teremos um dia de intervalo para mudar de opinião e projecto, porém ainda mais prudente seria dizer, Um dia decidirei quando será o dia de dizer depois de amanhã, e talvez nem seja preciso, se a morte definidora vier antes desobrigar-me do compromisso, que essa sim, é a pior coisa do mundo, o compromisso, liberdade a que nós próprios negámos.


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