quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

AS OUTRAS CANÇÕES DE NATAL

O prazer do Inverno reside no lume.

Já não lembra onde leu a frase, mas guardou-a bem. Porque ela lhe traz o gosto que tem por lareiras e, como tantas outras coisas, não sabe explicar o encantamento de ficar a olhar o lume, a cumplicidade silenciosa, melancolias incuráveis, como lhe dizia o Mário-Henrique Leiria que também gostava do Natal.

E este tempo de Natal, que vai olhando os seus últimos dias, traz-lhe sempre a ideia de frio, de lareiras. Sempre que se senta frente a uma lareira, ocorre-lhe o título de um livro, póstumo, do Manuel da Fonseca, À Lareira, Nos Fundos da Casa Onde O Retorta Tem o Café, pela cadência que transmite, a lentidão das conversas em redor do lúmi ou o suave silêncio que, por vezes, é bem melhor que as faladuras.

Não tem lareira mas gostava de ter. Não tem terra, nasceu em Lisboa, e procura na terra dos amigos esse cheiro antigo. Tornou-se um peregrino das lareiras dos amigos, tira-lhes fotografias.

 E dá-lhe para ouvir uma velha canção do Zeca Baleiro que ele encaixa nas Outras Canções de Natal.

 Faltam escassas horas para que estejamos num novo ano.

 Lembranças do Helder Pinho, anos 60 e picos, que vivia na Rua da Manutenção junto ao Tejo que passa por Xabregas, a telefonar-lhe aos gritos: «Eh pá! estou a ouvir a ronca dos barcos no Tejo, bom ano, camarada» e ele a lembrar-se que o Helder citava Baptista-Bastos na Cidade Diária, livro que ele  quase sabia de cor, também lembranças de José Saramago numa noite de fim de ano de 1994, «a noite de Lanzarote é cálida, tranquila. Ninguém mais no mundo quer esta paz?»

Sim, a vida, esta vida que, inapelavelmente, pétala a pétala, vai desfolhando o tempo.

OUVINDO BEETHOVEN


Não se sabe o dia certo em que Beethoven nasceu, apenas o registo do baptismo que se realizou em 17 de Dezembro de 1770 na Igreja de São Remígio em Bona.

O importante é a existência de um ser genial a que deram o nome de Ludwig von Beethoven.

Em 1793 escreveu no álbum de um amigo:

«Amar acima de tudo a Liberdade»

Uma vida complicada, um livre pensador, a sua rebeldia, a surdez, decepções várias e traços fundamentais do seu ser como a melancolia, o destino, os amores destroçados, desconhecia o valor do dinheiro.

Nos primeiros dias do ano de 1797 escreve no seu Diário:

«Coragem! Apesar de todos os desfalecimentos do corpo, o meu génio há-de triunfar. Eis-me com vinte e cinco anos, é preciso que este ano revele o homem feito – Nada deve ficar por fazer.»

Sabemos que num dia longe de 1974, José Saramago escreveu um poema em que, ouvindoBeethoven, dizia que «hão-de ruir em estrondo os altos muros e chegará o diadas surpresas.»

Beethoven sempre quis agarrar o Destino pela garganta, que ele não o haveria de vencer mas, em 1802 numa carta a seus irmãos, falava de desespero e só a sua arte, é ele que o diz, o conteve que pusesse termo à vida.

Morreu em Viena no dia 26 de Março de 1827.

Neste findar do ano falemos de Alegria – é possível?!! -  podemos parar  na Nona Sinfonia de Beethoven e reproduzo o que li no blogue Vera Veritas  de João Pimentel Ferreira:

«O Hino à Alegria é um poema do Poeta Alemão Friedrich von Schiller que Ludwig van Beethoven adaptou para a letra do quarto andamento da sua nona sinfonia. O mesmo hino serve de base ao Hino oficial da União Europeia. Até agora as traduções para português ou careciam de serem fidedignas à letra original de Schiller, ou sendo fidedignas, não respeitavam a métrica e a rima do poema, para que se adaptassem à música de Beethoven.

Num exercício matemático e poético, de encaixe silábico e usando algoritmos de tentativa-erro para a métrica e para a rima, apresento-vos a primeira tradução para português do Hino à Alegria, que além de ser fidedigna ao espírito do poema original de Schiller, respeita também a rima e a métrica do poema que Beethoven usou para o quarto andamento da sua nona sinfonia, sendo assim adaptável à música que compõe o Hino da Alegria, ou seja, o Hino da União Europeia.

      Freude, schöner Götterfunken
      Tochter aus Elysium,
      Wir betreten feuertrunken,
      Himmlische, dein Heiligtum!

      Deine Zauber binden wieder
      Was die Mode streng geteilt;
      Alle Menschen werden Brüder,
      Wo dein sanfter Flügel weilt.

      Wem der große Wurf gelungen,
      Eines Freundes Freund zu sein;
      Wer ein holdes Weib errungen,
      Mische seinen Jubel ein!

      Ja, wer auch nur eine Seele
      Sein nennt auf dem Erdenrund!
      Und wer's nie gekonnt, der stehle
      Weinend sich aus diesem Bund! 


Oh Alegria, sois Divina
filha de Elísio
tornais ébria a Poesia
inspirais Dionísio

Nem costumes ou tradição
Vos reduzem o Encanto
criais-nos um mundo irmão
insuflais nosso Canto

Feliz de quem alcançou
ser-se amigo dum amigo
Quem doce dama ganhou
jubile-se comigo

Quem um só ente conquistou
seja citado no mundo
mas se na Alegria falhou
ficai só moribundo!


Legenda: retrato de Beethoven pintado, em 1820, por Joseph Karl Stieler

OLHARES

Os netos, estávamos já a viver em pandemia, não havia festas, saudaram-no da rua, quiseram lembrar-lhe a frase que volta e meia lhes costuma dizer:

«Nasci em 45!»

Trouxeram a frase, o mais novo rabiscou um desenho, e ali tudo ficou, naquela parte da estante onde está o creme do creme dos livros da biblioteca da família: José Gomes Ferreira. Saramago, Mário de Carvalho, Rodrigues Miguéis.

Esta noite, sairá e tem como rumo, ou destino final, o baú das memórias.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

LISBOA AO VOO DO PÁSSARO

Quando há dias Mr. Ié-Ié colocou por aqui a fotografia da placa, que num edifício em Lisboa, nos diz que ali viveu Luis de Sttau Monteiro, ficou à conversa com JC a lembrar um escritor que caiu no completo esquecimento.

Contou então que fora na “Livraria Anglo-Americana,” ali no Cais do Sodré, Rua Bernardino Costa, 32, Lisboa 2 – Telefone 327703, que comprara a edição-fora-do-mercado de “Terra Santa”, que valeu a Sttau Monteiro uns tempos passados em Caxias.

7 de Abril de 1967

O Magalhães Godinho, esta tarde:

O Supremo Tribunal de Justiça negou, por unanimidade o “Habeas Corpus” ao Sttau Monteiro.

E com voz nítida e articulada, para o futuro ouvir bem, repetiu:

- POR UNANIMIDADE.

A palavra “unanimidade” ainda conseguiu assombrar o grupinho…

Nem um, ao menos? Nem um juiz, ao menos?

José Gomes Ferreira em “Dias Comuns”, Vol. II

Eduardo Olímpio, alentejano de Santiago do Cacém, não teve lições de livros doirados, nasceu entre as dobras de ventos e trigos mas nunca traiu os amigos, como diz numa canção de que é autor, ou “um cavalo de perder corridas” como gostava de se chamar, foi, até ao seu encerramento, empregado da “Livraria Anglo-Americana”.

Com ele estabeleceu laços de amizade e cumplicidade. Quando certos livros chegavam à livraria, e ele sabia que não tardaria muito que a PIDE por lá passasse para os apreender, guardava um exemplar. Sabia o que esta casa gastava.

Gratas recordações. Conversas sem fim. 

Pena a “Zarzuela” não ter um bagaço decente para acompanhar a bica enquanto se olham as raparigas, dizia o Eduardo já com a cara a avermelhar.

Ao Lado da “Anglo-Americana” havia a Pastelaria “Caneças”. Tempos depois do 25 de Abril, a “Caneças” transformou-se em Boutique do Pão e mais tarde amplia as suas instalações comprando a “Anglo-Americana", onde se vendia um outro tipo de pão.

Um pão vale mais que um Shakespeare?

Alguém a murmurar: words words, words

Em redor da “Anglo-Americana” havia todo um mundo daquilo que todos chamavam porta-aviões.

A barra mansa do “British-Bar”, o velho “English-Bar”, quase um clube inglês daqueles dos romances policiais, hoje está lá uma cervejaria, do outro lado da rua o “Bar Americano” onde o José Cardoso Pires se sentava em silêncio, copo de whisky sobre a mesa e, ao lado, o “Califórnia”, café, restaurante, bilhares na cave, também barbeiro e manicure, kioske de jornais e revistas e o António, ao findar-da-tarde-quase-noite, a fritar uns “pregos”, carregados de alhos, ovo a cavalo, fininhos com dois dedos de espuma.

E se ele um dia perde a memória de tudo isto?

Não quer pensar nisso, chega à janela das traseiras e grita: – “Oh Incas, oh incas, oh sol d’Asía!”.

PS - O título do “post” é roubado ao Mário-Henrique Leiria, a fotografia é tirada, num dia cinzento, por um incrível caixote Kodak, máquina que deixou numa qualquer mesa, num qualquer balcão. A “Anglo-Americana” é naquela esquina onde se pode ver um reclame aos cigarros “Chesterfield”.

CAIS DO SODRÉ 77

Para completar as “Memórias” de ontem, ficam aqui três fotografias.

A da“Livraria Anglo-Americana”, hoje está lá a “Caneças”, boutique do pão, uma fotografia do “British Bar” e outra do “English-Bar”.

Foram tiradas no mesmo dia cinzento, provavelmente no ano de 1977, mas nunca depois desse ano.

Quando José Cardoso Pires desenha para a “Expo 98” o seu “Lisboa Livro de Bordo”, já o “English-Bar” não existia. Transformara-se na cervejaria que ainda hoje lá está. Daí que, no que ao Cais do Sodré diz respeito, Cardoso Pires apenas referir o “British-Bar” e o “Bar Americano” que ainda por lá se encontra mas não é nada do que era e que de bar só ficou o nome. Situa-se em frente à “Caneças”.

Esta fotografia do “British-Bar” é de antes da remodelação que se verificou após as filmagens de A Cidade Branca de Allain Tanner.
Ponto de encontro, a qualquer hora do dia e da noite, de trabalhadores de agentes de navegação e agentes transitários, “ship-chandlers”, um pouco de tudo que à navegação, naquele tempo, dizia respeito.

O antigo dono levou o papagaio (ou arara?), bem como o relógio com os ponteiros a andarem em sentido contrário, relógio que aparece no filme A Cidade Branca.
O problema do relógio, o Silva resolveu: mandou vir um outro de Copenhague. Papagaio (ou arara?) nunca mais houve.

José Cardoso Pires no seu "Livro de Bordo":

“No British Bar os anos passam, as gerações mudam, vêm literatos, vêm contrabandistas, vêm estivadores à mistura com meninas de civilização, mas o espírito e a cor local mantêm-se inconfundíveis. Tem um sabor a cais sem água à vista, este lugar.”

“English-Bar” era uma sala espaçosa com maples de couro, como nos velhos clubes ingleses, um ambiente mais calmo, mais respeitável que o do “British”. 

Para simplificar, dizer que era ali que parava o patronato das agências de navegação.

Também tinha balcão e no bengaleiro estava pendurada uma bolsa com tacos de golfe.

Texto publicado em 5 de Junho de 2010.

CAIS DO SODRÉ 79

"Bar Americano" era diferente do “British” e do “English”.

Uma sala pequena, um balcão de madeira, também paredes de madeira. Um bar de silêncios.

Como todos os bares do Cais do Sodré, a clientela era constituída por trabalhadores de agências de navegação e similares.

Uma conclusão simples: dos três bares o “British” era o bar popular, o bar de toda a gente.

E para que o retrato fique um pouco mais composto, voltamos ao “Livro de Bordo” do José Cardoso Pires, ele que um dia disse que um “barman” é um comandante do prazer:

Não há dúvida, os bares são realmente navegações pessoalíssimas. Do outro lado da rua tenho “O Americano” que, como figura de proa, não ostenta um relógio de intrigar mas um possante urogalo embalsamado num altar de parde. Em tempos foi um balcão de suevos, daneses e britânicos, funcionários, todos eles, das agências de navegação do Cais do Sodré, e aqui, hoje que o dia está de feição, torno a tropeçar noutro poeta: Pessoa. O Pessoa, sempre o Pessoa, o Pessoa, nosso fadário. Também ele, nos gloriosos anos trinta, frquentava “O Americano” às horas litúrgicas dos “morning drinkers”. Navegações é o que eu digo. Nos bares do Cais do Sodré ninguém está livre de apanhar com uma porta à deriva pela proa.

Hoje “O Americano” perdeu lastro, balança à tona dum passado de bebedores em inglês, reflectidos no “gin-tonic” ou no “sling”. Está quase em seco, como se vê, sem esses navegantes de balcão; e a emoldurar a sua solitude exibe calendários de “shi-chandlers” com navios de grande curso a fumegarem nas paredes. 

José Cardoso Pires sentado a uma mesa do "Bar Americano". Desconheço a data da fotografia, que foi retirada de um número da revista "Ler" editada pelo "Círculo de Leitores."

Texto publicado em 4 de Junho de 2010.

AH! SIM, AS LOJAS COM HISTÓRIA...


 Tive sempre o pressentimento de que as Lojas com História era apenas uma ideia, talvez se possa dizer uma ideia interessante. mas apenas isso ou histórias para camelos como diria o Fernando Assis Pacheco

Quando chegasse a especulação do imobiliário, adeus lojas, adeus história, adeus ideias interessantes, adeus Lisboa.

Chegou agora a vez do Bar Americano, ali ao Cais do Sodré.

Do site das Lojas com História, retiro este paleio:

 «O Bar Americano foi inaugurado em 1920 no coração de uma zona ribeirinha conhecida pelos seus bares. Rapidamente assimilou o ambiente multilíngue e multiétnico - marinheiros de todas as partes do mundo, turistas (mas menos do que hoje), diversos artistas e gente da noite, seja por profissão ou profissão. Dos muitos milhares de convidados que já recebeu, a memória tende a ficar naqueles nomes atemporais, como os dos escritores José Cardoso Pires e Alexandre O'Neill, que aqui sentavam e escreviam, festejavam ou apenas passavam o tempo /noite.

O Bar Americano é um dos três bares de influência anglo-saxônica da região - entre Corpo Santo e Cais do Sodré. Cardoso Pires, frequentador destes bares, escreveu numa crónica intitulada De bar em bar.»

 Não ponho mais paleio porque o resto até refere que o Bar Americano tem uma enorme tela de televisão que atrai numerosos espectadores em dias de jogo de futebol.

 O Americano era um bar de silêncios, cuja única música que se ouvia, era o tilitar do gelo nos copos.

Foi aí que ouvi que, em conversa pacata e feliz, a descrição do que é um barman: «o que ouve é como não tivesse ouvido, o que vê é como não tivesse visto.»

 Fechou um dos bares mais antigos de Lisboa e que, neste ano prestes a findar, completou 100 anos.

Naquele enorme quarteirão nascerá mais um Hotel.

Deixo-vos a seguir umas memórias de tempos que já foram, notáveis tempos.

 São lúgubres estes tempos de crise pandémica.

Estamos a tentar sairmos vivos, mas o galho está difícil!

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

NOTÍCIAS DO CIRCO


Dizem os noticiários televisivos que está e decorrer a reestruturação da TAP, com a necessária benção da Comissão Europeia.

Dizem os noticiários televisivos que Ramiro Sequeira, que ocupa o cargo de presidente executivo da TAP, de forma interina desde meados de Setembro, passou a receber 35 mil euros brutos por mês com a subida à liderança da companhia aérea, quase o dobro do que ganhava no anterior cargo de administrador.

Dizem os noticiários televisivos que também o presidente do conselho de administração da TAP, Miguel Frasquilho, teve um aumento salarial – de 12 mil para 13,5 mil euros brutos por mês, que Alexandra Vieira Reis, que já era directora da TAP e também foi para a comissão executiva, ganhava 14 mil euros mensais e passou a receber 25 mil euros por mês.

Os noticiários televisivos são omissos sobre o despedimento de 1800 trabalhadores da TAP, e o corte de vencimento aos trabalhadores que vão permanecer na companhia.

 Os noticiários televisivos são também omissos no vernáculo que, no café do bairro, se fez ouvir quando o locutor televisivo leu a notícia.

Gente merdosa foi o mais simpático que se ouviu.

HÁ 156 ANOS


A 29 de Dezembro de 1864 saía o 1º número do Diário de Notícias
Maravilhoso aquele:
«SUAS MAJESTADES E ALTEZAS PASSAM SEM NOVIDADE EM SUAS IMPORTANTES

SAUDES»


segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

AINDA, E SEMPRE, O NATAL!


  

Todos os anos, pelo Natal, o Abílio oferece-lhe uma cassette (objecto em vias de extinção e o Abílio queixa-se que, cada vez mais, se torna difícil encontrá-las).

Grava-lhe coisas “fixes”, coisas “velhinhas”, diz ele.

Como não tem misturador, o Abílio perde horas para que a cassette não tenha “brancas” e as canções tenham um alinhamento.

De algumas das musiquinhas gosta, de outras não, mas isso é a velha história.

Poderia passar o Natal sem uma cassette do Abílio, mas não era bem a mesma coisa. Um pouco como aqueles tios amalucados que aparecem na Festa de Natal: incomodam quando estão; sentimos saudades quando faltam.

Foi a arrumar a cassette deste Natal em “su sitio”, onde há alguns anos alinha as cassettes, oferecidas pelo Abílio, que se lembrou de uma tirada do livro AltaFidelidade, de Nick Hornby.

Foi reler e não achou disparatado fazer a transcrição:

Passei horas a alinhar a cassete. Para mim, gravar uma cassete é como escrever uma carta – tenho de apagar muito, repensar e começar outra vez de início, e eu queria que a cassete ficasse boa, porque… para falar verdade, porque nunca tinha conhecido nenhuma mulher tão promissora como a Laura desde que tinha começado a pôr música, e conhecer mulheres promissoras era parte da profissão.

É difícil fazer uma boa cassete de compilação, tal como é difícil acabar uma relação. É preciso abrir com uma música surpreendente, para captar a atenção (comecei com “Got To Get You Off My Mind”, mas a seguir percebi que ela podia não passar da primeira faixa do lado A se eu desse logo tudo, por isso encaixei-a a meio do lado B), e depois sem se pôr uma mais enérgica ou mais calma, e não se pode misturar música branca com música negra, a menos que a música branca seja parecida com música negra, e não se pode pôr duas faixas do mesmo artista ao lado uma da outra, a menos que se tenha posto todas aos pares, e… oh, há imensas regras.

Seja como for, fartei-me de trabalhar, e ainda tenho meia dúzia de “demos” antigas espalhadas pela casa, cassetes-protótipo em relação às quais fui mudando de ideias. E na sexta-feira à noite, tirei-a do bolso do blusão quando ela veio ter comigo, e seguimos caminho a partir dai. Foi um bom início.

OUTROS NATAIS


 A fotografia e o texto que a acompanha, encontrou-a no excelente blogue Largo da Memória, da autoria de Luís Eme, leitura diária que há longos anos não perde.

O Luís não esqueceu de mencionar:

«E sim, viviam pessoas nessa barraca, quando tirei o retrato...»

domingo, 27 de dezembro de 2020

ANTOLOGIA DO CAIS


Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.

 

ÉRAMOS TANTOS À MESA


Primeiros anos da década de 60.

 Os tempos não eram fáceis.

 No jantar do Dia de Natal e do Dia de Ano Novo, comia-se perú assado no forno.

 Uns dias antes do Natal, ia com o meu pai ao Lavradio buscar dois perús, que tinham vindo do Alentejo, criados a bolota e tudo o que há (ou havia) nos montados alentejanos.

 Na Estação Sul e Sueste apanhávamos o barco para o Barreiro, ainda a vapor.

 Depois a camioneta do José Cândido Belo para o Lavradio, onde vivia um tio que trabalhava na CUF.

 Mais de meio-dia de viagens, acreditem.

 Os perús vinham, vivos, em dois cestos de verga.

 O do Natal era logo embebedado com bagaço, depois temperado pela minha avó materna.

 O do Ano Novo ficava dentro do tanque de lavar a roupa, ia comendo uma mistura de pedacinhos de couve e milho, e a aguardar a bebedeira antes de entrar no forno.

 Com tudo isto gastava-se dinheiro que ultrapassava o mais que parco orçamento caseiro.

 Dinheiro que iria fazer falta nos restantes dias, mas, festa é festa, e o Natal e o Ano Novo eram sagrados.

 Para os males monetários, é que existiam as Casas de Penhores.

 Nunca comi perú assado, como aquele que, depois de maneira única temperado pela minha avó, era assado, muito lentamente, no forno.

 Arroz de miúdos, batatas fritas às rodelas, salada de alface.

 Tangerinas, mas tangerinas mesmo.

 O arroz doce apresentava-se em pires, com a primeira letra do nome dos convivas, desenhada com canela.

 Legenda: imagem do Arquivo Shorpy

 Texto publicado no dia 1 de Janeiro de 2017.

GALOS, GALINHAS, FRICASSÉ

No dia 25 de Janeiro de 1990, podia ler-se na London Review of Books:

Numa visita presidencial a uma quinta, a senhora Coolidge perguntou ao guia quantas vezes o galo copulava diariamente. “Dezenas de vezes”, foi a resposta. “Por favor, diga isso ao Presidente”, pediu a senhora Coolidge. Quando o Presidente passou pelo galinheiro e foi informado em relação ao galo, perguntou: “Sempre com a mesma galinha?” “Oh, não, senhor Presidente, com uma galinha diferente de cada vez.” O Presidente acenou lentamente com a cabeça e disse: “Diga isso à senhora Coolidge.”»

Há muito e muito tempo, neste pequeno país, o confessor real admoestou D. João V pelas aventuras fora do leito conjugal. Sua majestade não gostou e pôs o eclesiástico a galinha de fricassé. Todos os dias, em todas as refeições, comia o mesmo. Farto do pitéu, o abade implorou mudança de dieta.

«Está a ver meu bom padre, nem sempre galinha nem sempre rainha.»

sábado, 26 de dezembro de 2020

ANTOLOGIA DO CAIS


Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.

DE SOLIDÕES

Aos poucos, vamo-nos despedindo do Natal, e relembrando uma das mais interessantes e pungentes canções de Natal , Fairytale Of New York dos Pogues com a Kirsty MacCall, sabemos que os rapazes do coro da polícia de Nova Iorque cantavam Galway Bay, enquanto os sinos tocavam por toda a cidade, ao mesmo tempo que José Tolentino Mendonça, numa das suas excelentes crónicas no Expresso, abordando a solidão do Natal, revelava que lera uma carta que o escritor Jack London escreveu na manhã de Natal, de 1898, quando tinha 20 anos. e momentaneamente abandonara as errantes vagabundagens no seu barco, pelas celebrações caseiras do Natal:

«Mas no fundo dos rituais familiares a que ele assiste (a abertura dos presentes diante da lareira acesa, o risos das crianças felizes, os ornamentos aconchegantes, os reflexos de uma existência segura…) descobre-se sempre mais como um estranho, e tudo aquilo que o deveria apaziguar fá-lo afinal descobrir vencido, como se o seu “bilhete de lotaria da vida tivesse o número errado”. Ele que passou a adolescência a saltitar entre centros de reeducação, que teve de lutar para aguentar-se nos estudos, que, para sobreviver, foi ardina, pescador furtivo, agente de seguros, caçador de focas, pugilista e garimpeiro, ele homem de têmpera rija sente-se naquela manhã vacilar, perdido dentro do grande puzzle que o Natal faz parte. A carta que Jack London escreve é uma espécie de relatório do seu desconforto. Mas creio que não é só isso. É também um documento sobre a grande solidão que o Natal escancara».

Linhas à frente, José Tolentino pergunta:

“Porque é que o Natal faz sofrer?”

Guardei sempre um velho recorte do velho «Diário de Lisboa» de 27 de Dezembro de 1976:

“António Manuel, de 14 anos, no dia de Natal, lançou-se de uma janela do Coliseu do Porto, tendo sido conduzido ao Hospital de Santo António sem fala e com várias fracturas.
O jovem, que é natural do lugar de Idanha, encontra-se numa fase de recuperação, tendo começado já a articular algumas palavras”
O jornalista fechava assim a notícia:
“De acordo com estatísticas mundiais, a quadra do Natal regista sempre uma subida de tentativas de suicídio, que alguns psicólogos identificam com uma maior acuidade em relação à solidão em dias que a maioria das pessoas se reúne para confraternizar.”

Lembro, com muita tristeza lembro, aquela noite, as festas felizes a findarem, quando o poeta Eduardo Guerra Carneiro, feito rapaz do trapézio voador,se mandou, no meio do silêncio, para um qualquer céu estrelado.

E sempre aquela canção de Brel, deixa-me ser a sombra da tua sombra, a sombra da tua mão, a sombra do teu cão, mas não me deixes.

Ainda José Tolentino Mendonça:

«O Natal é atravessado por um dramatismo que nos abala, pois nos retira do feérico entretenimento das perguntas penúltimas e nos coloca perante as perguntas últimas.» 

Legenda: pintura de Van Gogh

Texto publicado em 30 de Dezembro de 2019.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

DITOS & REDITOS


Quem não se dá ao respeito é desrespeitado.

Todas as crises são uma oportunidade de grandes negócios.

Sem esperança é impossível viver.

Só há uma possibilidade de escapar ao erro: cometer novos erros.

Um homem deve fazer perguntas.

O silêncio nunca é uma tomada de posição.

A cura para o isolamento é a solidão.

Não importa de onde vimos mas para onde vamos.


Legenda: foto Shorpy, peditório de Natal, Nova Iorque, Rhode Island, 1903.

O NATAL DE BELÉM

A Direcção Geral de Saúde determinou: «neste Natal não corra riscos. Evite estar com diferentes grupos de família»

Marcelo Rebelo de Sousa, presidente desta república, disse, numa entrevista televisiva, que teria quatro refeições diferentes da sua família. 

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

... E OS DIAS DIMINUEM

Os dias cansaram-se e deixam de diminuir.

Será hoje o dia mais curto do ano, a noite mais comprida.

Passaremos a assistir, primeiro em amostragens ridículas, aos dias com mais claridade.

É assim que ficaremos à espera da Primavera.

Esperar pela Primavera é tão importante como assistir à sua chegada.

No atordoamento destes dias tão difíceis, é bom pensar que a Primavera chegará. 

LADAÍNHA DOS PRÓXIMOS NATAIS


Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito

David Mourão-Ferreira em Obra Poética

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

ERA NOITE DE INVERNO, LONGA E FRIA

Era noite de inverno longa e fria,
Cobria-se de neve o verde prado;
O rio se detinha congelado,
Mudava a folha cor, que ter soía.

Quando nas palhas duma estrebaria,
Entre dois animais brutos lançado,
Sem ter outro lugar no povoado
O Menino Jesus pobre jazia.

-- Meu amor, meu amor, porque quereis
(Dizia Sua Mãe) nesta aspereza
Acrescentar-me as dores que passais?

Aqui nestes meus braços estareis;
Que, se Vos força amor sofrer crueza,
O meu não pode agora sofrer mais.

Frei Agostinho da Cruz da antologia Natal… Natais

Legenda: pintura ede Josefa de Óbidos

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

DOS CÉUS À TERRA


Dos Céus à Terra desce a mor Beleza,

Une-se à nossa carne e fá-la nobre

E sendo a humanidade dantes pobre,

Hoje subida fica à mor alteza.

 

Busca o Senhor mais rico a mor pobreza,

Que, como ao mundo o seu amor descobre,

De palhas vis o corpo tenro cobre,

E por elas o mesmo Céu despreza.

 

Como Deus em pobreza à terra desce?

O que é mais pobre tanto Lhe contenta,

Que só rica a pobreza lhe parece?

 

Pobreza este Presépio representa,

Mas tanto por ser pobre já merece,

Que quanto é pobre mais, mais lhe contenta.

 

Luís de Camões, da antologia Natal… Natais

 

Legenda: pintura de Giotto di Bondone

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

AS OUTRAS CANÇÕES DE NATAL

Demos cabo do planeta.  

Disto e daquilo, vivemos com todas as comodidades.

Mas é terrível e trágico o preço a pagar.

Como deixou expresso o poeta José Gomes Ferreira:

«Os filhos dos nossos filhos hão-de insultar-nos: “covardes! Que nos deram um planeta sujo”»

Esta canção, What a Wonderful World, que também vem do saco das não canções de Natal, é uma lindíssima canção, mas é uma mentira.

Tiremos o disfarce e não veremos nem as florestas verdes, nem as rosas vermelhas, nem o céu azul, antes angústias derramadas em pontes sobre águas turbulentas, para lembrar uma canção de Paul Simon.

Esta canção é também pretexto para vos ler um bonito texto de Truman Capote sobre  Louis Armstrong tirado de Os Cães Ladram:

«Com certeza que o Satch já se esqueceu, mas a verdade é que foi um dos primeiros amigos deste escritor, conheci-o com quatro anos, por volta de 1928, quando ele, um Buda achocolatado e rechonchudo de uma intrépida felicidade, tocava a bordo de um barco a vapor turístico entre Nova Orleães e St. Louis. Não interessa porquê, mas eu tinha a oportunidade de fazer a viagem amiúde, e para mim a doce revolta do trompete de Armstrong, a exuberância coaxada dos seus apartes, «’come to me, baby», são um pedaço da madalena de Proust; fazem ressurgir as luas do Mississípi, convocam as luzes enlameadas de vilas ribeirinhas, o som das sereias do rio como bocejos de um crocodilo; ouço a corrente do rio mulato a rumorejar, ouço, sempre, tump! Tump! a batida do pé sorridente do Buda, abrindo caminho aos gritos pela «berma soalheira da rua» e os dançarinos em lua-de-mel, estonteados do álcool de contrabando e suando através do pó de talco, abraçados como coelhinhos às voltas pelo salão de baile do barco. O Satch foi bom para mim, disse-me que eu tinha talento, que devia ir para o teatro de revista; deu-me uma cana de bambu e um chapéu de palha com uma fita verde-hortelã, e todas as noites anunciava do alto do palanque:

- Minhas e meus senhores, vamos agora apresentar-vos um dos miúdos simpáticos da América que vai fazer um pequeno número de sapateado.

Depois eu passava pelos passageiros a recolher moedinhas no chapéu. Isto passou-se todo o Verão, fiquei rico e vaidoso; mas em Outubro o rio engrossou, a lua embranqueceu, os clientes começaram a rarear, as viagens de barco terminaram e com elas a minha carreira. Seis anos mais tarde, a morar num internato de onde queria fugir, escrevi ao meu antigo benfeitor, já então famosos, a perguntar-lhe se ele não me podia arranjar um emprego no Cotton Club, ou noutro sítio, se eu fosse para Nova Iorque. Não obtive resposta, talvez ele nunca tenha recebido a carta, não faz mal, eu continuei a gostar dele, ainda gosto.»

 

O MEU NATAL


A noite de Natal. Em meu País, agora.

O que não vai até romper o dia, a aurora!

As mesas de jantar na cidade e na aldeia,

à luz das velas, ou à luz de uma candeia,

Entre risadas de crianças e cristais

(De que me chegam até mim só ais, só ais!).

Dois milhões de almas e outros tantos corações,

Ponde de parte ódios, torturas, aflições,

Que o mal suaviza e faz adormecer o vinho:

São todas em redor de uma toalha de linho!


António Nobre, excerto do poema O Meu Natal

Legenda: fotografia tirada de Porto, O Livro de Natal de Helder Pacheco

domingo, 20 de dezembro de 2020

OUTROS NATAIS


Àrvores de Natal à venda, em 1940, numa bomba de gasolina em Rhode Island.

Legenda: Fotografia Shorpy

ANTOLOGIA DO CAIS

Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.

SARAMAGUEANDO

 Estes pequenos filhos dos homens têm andado pelas minhas crónicas. Mas de crianças tenho falado como quem as conhece bem, só porque também por lá passou. E agora pergunto: que são as crianças? Dez mil pedagogos se preparam para me responder. Afasto de antemão as respostas, umas que já conheço, outras que adivinho, e torno a perguntar: que são crianças?

Que seres estranhos são esses que viram para nós os seus rostos frescos, que nos perturbam às vezes com um olhar subitamente profundo e sábio, que são irónicos e gentis, débeis e implacáveis, e sempre tão alheios? Temos pressa de os ver crescer, de os admitir no clã dos adultos sem surpresas. Somos impacientes, nervosos, porque estamos diante de uma espécie desconhecida... Quando passam a ser nossos iguais, falamos-lhes da infância que tiveram (a que recordamos, como observadores do lado de fora) e sentimo-nos quase ofendidos porque eles não gostam de ouvir lembrar uma situação em que já não se reconhecem. São adultos, agora: outra espécie humana, portanto.
Nessa infância está, por exemplo, a história que vou contar e que devo a um desses tais encontros de acaso. E depois de eu a reproduzir aqui, dir-me-ão se não tenho razões para insistir: é preciso cuidado com as crianças... Não o cuidado comum, que tende a prevenir acidentes, aqueles que aparecem sob esta rubrica nas notícias dos jornais, mas um outro cuidado, mais melindroso e subtil. Eu explico.
Uma professora mandou um dia aos seus alunos que fizessem uma composição plástica sobre o Natal. Não falou assim, claro. Disse uma frase como esta: «Façam um desenho sobre o Natal. Usem lápis de cores, ou aguarelas, ou papel de lustro, o que quiserem. E tragam na segunda-feira.» Assim ou não assim, os alunos fizeram o trabalho. Apareceu tudo quanto é costume aparecer nestes casos: o presépio, os Reis Magos, os pastores, S. José, a Virgem e o Menino Jesus. Mal feitos, bem feitos, toscos ou apuradinhos, os desenhos caíram na segunda-feira em cima da secretária da professora. Ali mesmo ela os viu e apreciou. Ia marcando «bom», «mau», «suficiente», enfim, os transes por que todos nós passámos. De repente... Ah, mas é preciso muito cuidado com as crianças! A professora segura um desenho nas mãos, e esse desenho não é melhor nem pior que os outros. Mas ela tem os olhos fixos, está perturbada; o desenho mostra o inevitável presépio, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração. Sobre esta cena sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê?
«Porquê?», pergunta a professora, em voz alta, à criança. O rapazinho não responde. Talvez mais nervosa do que quer mostrar, a professora insiste. Há na sala os cruéis risos e murmúrios de rigor nestas situações. A criança está de pé, muito séria, um pouco trémula. E, por fim, responde: «Fiz a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu...»
Daqui por um mês chegaremos à Lua. Mas quando e como chegaremos nós ao espírito de uma criança que pinta a neve preta porque a mãe lhe morreu?

José Saramago, excerto da crónica A Neve Preta em Deste Mundo e do Outro 

Texto publicado em 14 de Dezembro de 2017

A NOITE DE NATAL

Era a noite de Natal
Alegram-se os pequenitos;
Pois sabem que o bom Jesus
Costuma dar-lhes bonitos.

Vão-se deitar os lindinhos
Mas nem dormem de contentes
E somente às dez horas
Adormecem inocentes.

Perguntam logo à criada
Quando acorde de manhã
Se Jesus lhes não deu nada.

– Deu-lhes sim, muitos bonitos.
– Queremo-nos já levantar
Respondem os pequenitos.

 

Mário de Sá-Carneiro, tirado da antologia Natal… Natais

Legenda: pintura de Fra Filippo Lippi


sábado, 19 de dezembro de 2020

RELACIONADOS


No dia 25 de Novembro de 1976, Mário Castrim, no seu Canal da Crítica intercalou os últimos momentos de vida do pintor e militante comunista José Dias Coelho com a crítica de televisão.

ANTOLOGIA DO CAIS

Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.


A MORTE SAIU À RUA NUM DIA ASSIM


O escultor José Dias Coelho foi assassinado pela PIDE no dia 19 de Dezembro de 1961, na Rua da Creche, rua que hoje tem o seu nome, junto ao Largo do Calvário.

O assassinato está assinalado na canção de José Afonso A Morte Saiu à Rua do álbum Eu Vou Ser Como a Toupeira, gravado em 1972.

Antes de ser assassinado, José Dias Coelho estivera em casa de Mário Castrim que, na altura, morava na Rua Luís de Camões, perto da estação dos carros eléctricos e autocarros de Santo Amaro. 

No livro Viagens,  o poema Viagem Através de Uma Fatia de Bolo-Rei, Mário Castrim regista  esses últimos momentos de vida de José Dias Coelho:


Corria o ano de 1961.
Estávamos à porta do Natal.
Eram quase duas horas da manhã

e eu perguntei-lhe

se queria comer alguma coisa.

Disse que sim. Mas que

estava com muita pressa.

 

Enquanto vestia a gabardina, trouxe-lhe

uma sanduíche de fiambre

um copo de vinho

uma fatia de bolo-rei.

Estava de pé

comia como se fosse a primeira vez

desde a infância.

 

- Há quantos anos

deixa cá ver

há quantos anos é que eu não comia

bolo-rei?

Este é bom, sabe a erva-doce

e a ovos.

(Caíam-lhe migalhas

aparava-as com a outra mão

em concha)

 

- Comes outra fatia, camarada?

 

- Isso não.

Estou atrasado já.

Mas se ma embrulhasses...

 

Através da janela

do quarto às escuras

fico a vê-lo atravessar a Rua da Creche

seguir pela Rua dos Lusíadas.

 

Nenhum de nós sabia

que estava já erguida a pirâmide do silêncio

à espera dele

num breve prazo.

 

Quando talvez o gosto do bolo-rei

mais forte do que nunca

tivesse ainda na boca.

Funcionário clandestino do Partido Comunista, José Dias Coelho seguia pela Rua dos Lusíadas, quando cinco agentes da PIDE, saltaram de um automóvel e alvejaram-no, à queima-toupa, com um tiro no peito, e dispararam outro tiro quando já se encontrava por terra.

No  nº 9, referente a Março de 1962, de Notícias do Bloqueio, Pedro Alvim, no poema intitulado Lisboa, assinala o assassínio de Dias Coelho:

4 – Alcântara

Há quem tombe por um rio

Impetuoso e comum:

Alcântara dos tiros cegos

Alcântara sessenta e um.


No dia 24 de Novembro de 1976, começava, no 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, o julgamento do ex-agente da PIDE António Domingues, acusado de ter assassinado José Dias Coelho, julgamento que só terminaria no ano seguinte:

Na 1ª página do “Diário de Notícias”, de 6 de Janeiro de 1977, lia-se:

«O antigo agente da PIDE/DGS António Domingues, responsável pela morte do escultor comunista José Dias Coelho, foi, ontem, condenado em três anos e nove meses de prisão maior. Perdoados 90 dias e tomado em conta o tempo de prisão preventiva que já sofreu, desde 1974, vai o réu cumprir apenas mais cerca de 10 meses de cadeia. O tribunal (3ºTMTL) considerou não ter havido homicídio voluntário, mas apenas “ofensa corporal voluntária, de que resultou a morte “praeter-intencional”. Dado como provado o disparo de dois tiros, o último dos quais com a arama “muito próxima da roupa da vítima, a sentença foi recebida pela assistência com uma manifestação de protesto.»


No editorial do Diário de Lisboa, também de 6 de Janeiro, lia-se:

«Na verdade, reconhece-se a legitimidade da “profissão” de assassino de adversários políticos de um regime. É um insulto à memória de José Dias Coelho.

Um insulto aos mortos e aos vivos da resistência antifascista.

Um insulto ao 25 de Abril.»

Legenda:  A imagem de topo é uma gravura de José Dias Coelho, representando o operário Cândido Martins, assassinado na frente da manifestação do Barreiro contra a burla eleitoral e publicada no “Avante” nº 130 de Novembro de 1961. Para a que seria a sua última gravura, José Dias Coelho escreveu: “De todas as sementes deitadas à terra, é o sangue derramado pelos mártires que faz levantar as mais copiosas searas”

T

Texto publicado em 23 de Fevereiro de 2017

OUTROS NATAIS

Little Italy, Mulberry Street, Nova York, cerca do ano de 1900.

Legenda: fotografia Shorpy

NO SORRISO LOUCO DAS MÃES

 

No sorriso louco das mães batem as leves

gotas de chuva. Nas amadas

caras loucas batem e batem

os dedos amarelos das candeias.

Que balouçam. Que são puras.

Gotas e candeias puras. E as mães

aproximam-se soprando os dedos frios.

Seu corpo move-se

pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões

e órgãos mergulhados,

e as calmas mães intrínsecas sentam-se

nas cabeças filiais.

Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado

vendo tudo,

e queimando as imagens, alimentando as imagens

enquanto o amor é cada vez mais forte.

E bate-lhes nas caras, o amor leve.

O amor feroz.

E as mães são cada vez mais belas.

Pensam os filhos que elas levitam.

Flores violentas batem nas suas pálpebras.

Elas respiram ao alto e em baixo. São

silenciosas.

E a sua cara está no meio das gotas particulares

da chuva,

em volta das candeias. No contínuo

escorrer dos filhos.

As mães são as mais altas coisas

que os filhos criam, porque se colocam

na combustão dos filhos, porque

os filhos estão como invasores dentes-de-leão

no terreno das mães.

E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,

e atiram-se, através deles, como jactos

para fora da terra.

E os filhos mergulham em escafandros no interior

de muitas águas,

e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos

e na agudeza de toda a sua vida.

E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,

e através dele a mãe mexe aqui e ali,

nas chávenas e nos garfos.

E através da mãe o filho pensa

que nenhuma morte é possível e as águas

estão ligadas entre si

por meio da mão dele que toca a cara louca

da mãe que toca a mão pressentida do filho.

E por dentro do amor, até sòmente ser possível

amar tudo,

e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.

 

Herberto Helder de A Colher na Boca em Poesia Toda Vol. I


Legenda: pintura de Sandro Boticelli

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

... E OS DIAS DIMINUEM

A Academia Portuguesa de Cinema vai ter de abrir nova votação para escolher um filme candidato de Portugal ao Óscar de melhor filme estrangeiro, depois de a Academia norte-americana de cinema ter rejeitado a proposta inicial de Listen, o filme de Ana Rocha de Sousa, por este ser maioritariamente falado em língua inglesa sendo um dos critérios de elegibilidade a obrigação que pelo menos 50% do filme candidato seja falado em língua não-inglesa.

O filme  que arrecadou seis prémios no Festival de Veneza, retrata a história de um casal imigrante português em Londres, e, além dos diálogos em inglês, tem uma parte considerável de diálogos em português e em língua gestual.

A Academia portuguesa de Cinema terá de indicar outro filme. Os candidatos serão Mosquito, do realizador João Nuno Pinto, Patrick do realizador Gonçalo Waddington e Vitalina Varela, do realizador Pedro Costa .

1.

Em entrevista, a Comissária Europeia Elisa Ferreira, disse: a Comissária Europeia Elisa Ferreira

«Ao fim destes anos todos de apoio maciço de fundos estruturais, Portugal é ainda um país atrasado” que deve aplicar o dinheiro “de uma forma radicalmente diferente da reprodução do passado»

2.

Os contribuintes já perderam quase 21 mil milhões de euros a ajudar, nos últimos 12 anos, os bancos.

3.

Mais uma demissão entre os inspectores do SEF. Passam a ser 13 com processos dosciplinares.

Eduardo Cabrita continua ministro.

Até quando?

4.

A viúva de Ihor Homenyuk, o cidadão ucraniano assassinado no aeroporto de Lisboa por inspectores do SEF, pediu às televisões portuguesas, ávidas de circo mediático que lhes dê audiências, que a deixem em paz.

5.

Na Europa dos 27, Portugal, em tempos um pais de emigrantes para França, Alemanha, Brasil, Estados Unidos, é um dos que menos emprega imigrantes.

6.

Numa das suas crónicas no Expresso, José Tolentino de Mendonça diz-nos que é realmente impossível viver sem os outros e que a morte, segundo o poeta Paul  Célan, é uma flor porque floresce quando quer, mesmo fora da estação.

«Somos criaturas terrenas e seres destinados a realizar a experiência da morte. Pensar o que é a morte corresponde, deste modo, a abraçar o que a vida é», diz Tolentino Mendonça.

Sobre a morte não sabemos o que dizer, nem o que pensar

É tão estranho que entre a avalancha de saberes úteis e inúteis que acumula­mos uma vida inteira, não esteja este: aprender a morrer.

Sabemos então que pouco ou nada aprendemos sobre despedidas.

Guardo esta frase de Vitor Cunha Rego, que foi, entre outras coisas, director do Diário de Notícias:

«A pessoa preparar-se para a morte é a grande finalidade da vida.»