Nos Sonhos Começam as Responsabilidades
Delmore Schwartz
Tradução: Maria Dulce
Guimarães da Costa e Vasco Teles Menezes
Capa: Ilídio J.B.
Vasco
Prefácio: Lou Reed
Prólogo de Irving
Howe com uma introdução de James Atlas
Guerra e Paz, Editores, Lisboa, Junho de 2020
Penso que é o ano de 1909. Sinto-me como se estivesse numa sala de
cinema, o longo braço de luz a atravessar a escuridão e a girar, os meus olhos
fixos no ecrã. Isto é um filme mudo, como um da velha Biograph, os de cinematógrafo, onde os actores estão
vestidos com roupas ridiculamente fora de moda, e um jacto de luz sucede a
outro com saltos repentinos. Os actores também parecem dar saltos e andar muito
depressa. As próprias imagens estão cheias de pontos e riscos, como se estivesse
a chover quando foram tiradas. A luz é má.
É domingo à tarde, 12 de Junho de 1909, e o meu pai está a andar pelas
ruas tranquilas de Brooklyn, no seu caminho para visitar a minha mãe. As suas
roupas acabaram de ser passadas a ferro e a gravata está demasiado apertada no
colarinho alto. Agita as moedas nos bolsos pensando nas coisas espirituosas que
vai dizer. Sinto-me como se agora já me tivesse descontraído completamente na
suave escuridão do cinema; o organista faz ressoar as emoções óbvias e
aproximadas com que o público se embala inconscientemente. Estou anónimo e
esqueci-me de mim próprio. É sempre assim quando alguém vai ao cinema, é, como
se diz, uma droga.
O meu pai percorre as ruas com árvores, relvados e casas, chegando de vez em quando a uma avenida onde um carro eléctrico patina e chia, rogredindo lentamente. O condutor, que tem um bigode de pontas reviradas, ajuda uma jovem, com um chapéu que parece uma tijela com penas, a subir para o carro. Ela levanta ligeiramente as saias compridas quando sobe os degraus. Ele faz o troco vagarosamente e toca o sino. É obviamente domingo, porque toda a gente está a usar roupas domingueiras, e o barulho do carro eléctrico enfatiza o silêncio do dia santo. Não é Brooklyn a Cidade das Igrejas? As lojas estão fechadas e têm as persianas corridas com de uma ou outra papelaria ou drogaria com grandes bolas verdes nas montras.
O meu pai escolheu este longo caminho porque gosta de andar a pé. Pensa sobre si próprio no futuro e assim chega ao lugar que vai visitar num estado de suave exaltação. Não presta atenção às casas por onde vai passando, onde o almoço de domingo vai sendo comido, nem às muitas árvores que patrulham cada rua, agora a chegarem à folhagem plena e à altura em que envolvem toda a rua em sombra fresca. Uma carruagem ocasional passa, os cascos dos cavalos a baterem como pedras na tarde calma, e, de vez em quando, um automóvel, parecendo um enorme sofá estofado, expele fumaça ao passar.
2 comentários:
Que belo texto - e assim vai aumentando a minha lista de compras...este período da América entre a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial fascina-me.
Nunca tinha ouvido falar de Delmore Schwartz.
O título do livro é fabuloso. O conto que tem também esse nome, é ainda mais fabuloso.
Gostei do título e apontei-o para futura compra. Esqueci-me de todo.
Pelo Natal, queriam oferecer-me um livro e pediram-me uma referência. Apanhei-o da lista e lancei-o.
O livro foi-me oferecido.
Voltei a esquecê-lo.
Li-o agora e faltam-me todas as palavras para acrescentar qualquer coisa.
O Lou Reed, que escreve o prefácio, diz a certo ponto: «Escreveste o maior conto algum vez escrito.»
E mais não sei dizer.
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