… nesta apeensão súbita de um destino ainda por cumprir.
José Saramgo em
Deste Mundo e do Outro
A descrição que se segue encontra-se em Uma Longa Viagem Com José Saramago de
João Céu e Silva
“Está aqui uma jornalista que quer falar consigo”. O mais curioso é que a
correspondente da televisão (Teresa Cruz) deve ter dito a razão porque ela não
pôde conter-se e disse-me: “È que o senhor ganhou o Prémio Nobel”
Sei que estava evidentemente feliz, mas era uma
felicidade que não se manifestava feliz porque era uma grande coisa da qual eu
não tinha noção do tamanho.”
“Este é o prémio mais justo dos últimos 15 anos. Durante todos os anos em
que foi atribuído o Nobel, nunca tinha sido reconhecido este bloco linguístico
de mais de 200 milhões de pessoas. Estávamos à espera há muito tempo desta
notícia, com aquela angústia de quem não vê chegar as malas ao aeroporto. Desta
vez chegou. É justo. Saramago merece o Nobel.”
«Tenho milhares de cartas e costumo dizer que a obra completa de um escritor só estará realmente completa publicando-se uma selecção das cartas dos leitores porque – fala-se tanto da teoria da recepção – é naquelas cartas que se vê realmente o que é a recepção. Em casa devemos ter umas duas mil cartas de leitores que é preciso classificar e ordenar.»
E enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava.
Nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência do mundo.»
Só te digo isto a ti porque a carta da Academia Sueca me pede silêncio sobre o meu voto por isso te peço que não fales disto a ninguém.
A qual de nós engano quando irmão
Nestes versos te chamo?
Não são irmãs as folhas que do chão
Olham no céu o ramo.
Melhor é aceitar a solidão
Viver raivosamente como o cão
Que remorde o açamo.
José Saramago em Os
Poemas Possíveis
José Saramago
Legenda: pintura de Jackson Pollock
Continuação de alguns dos passos para se chegar ao
único Nobel da Literatura em português.
Se não queremos ir muito longe, os Cadernos de Lanzarote são, talvez, o melhor auxílio para elaborarmos anteriores referências que José Saramago tenha feito sobre o Prémio Nobel, não só o seu, mas o de outros.
Volume I
«Entrevista a Plínio Fraga, da “Folha de S. Paulo. Uma das questões era que António Houaiss, aqui há tempos, teria apostado em dois nomes para o Prémio Nobel deste ano: João Cabral de Melo neto e este servidor. Pedia-se-me que comentasse a declaração de Houaiss e eu lembrei a Plínio o que Graham Greene respondeu a um jornalista que lhe perguntou o que pensava ele da atribuição do Prémio Nobel a François Mauriac. Foi esta a frase histórica: “O Nobel honrar-me-ia a mim, ao passo que Mauriac honra o Nobel.” Aí tem, disse, eu sou o Grahaam Greene desta história, e João Cabral de Melo Neto o Mauriac. Mas, em seguida, esgotada a minha capacidade de abnegação e modéstia, e também para não aparecer aos leitores da “Folha” como um sujeitinho hipócrita, acrescentei, desta maneira me sangrando em saúde: “Em todo o caso, parecer-me-ia justo que o primeiro Nobel de Literatura para a Língua Portuguesa fosse dado a um português, porque, na verdade, vai para novecentos anos que estamos à espera dele, enquanto vocês nem sequer dois séculos de esperanças frustradas levam…»
(Página 21)
7 de Outubro de 1993
« O Nobel foi para uma escritora norte-americana negra
Toni Morrison. Ignorante como sou do que se faz literariamente no mundo da
língua inglesa, o nome dela era-me totalmente desconhecido. Mas, a avaliar
pelas declarações da contemplada e pelo que fiquei a saber agora da sua vida, o
prémio foi muito bem dado. Há traduções de livros seus em Espanha: vou tentar
pôr-me em dia.»
(Página 136).
Volume II
6 de Janeiro de 1994
José Saramago refere um artigo, publicado na revista
Cambio 16, assinado por Mário Ventura Henriques sobre os desejos e votos para o
ano que entra.
«Em dado passo pergunta-se o articulista se será neste
ano de 1994 que a literatura portuguesa se verá contemplada com o Nobel. O
insólito da história consiste em apresentar-se o artigo ilustrado com uma
fotografia minha, ainda por cima adornada com uma legenda que me associa ao
suspiradíssimo prémio»
(Página 12)
8 de Maio de 1994
Conversa em casa do Jorge Amado.
«Veio à baila as
probabilidade de um Nobel para a língua portuguesa… Jorge diz que há quatro
candidatos: Torga, João Cabral de Melo Neto, eu e ele próprio.»
(Página 110)
21 de Setembro de 1994
Jorge Amado escreve a Saramago e informa-0 que recebeu de
Nova Iorque a informação de que o Nobel
deste ano será para Lobo Antunes. Amado insiste que o seu favorito é outro.
« Quanto a mim, de Lobo Antunes, só posso dizer
isto: é verdade que não o aprecio como escritor, mas o pior de tudo é não poder
respeitá-lo como pessoa. Como não há mal que um bem não traga, ficarei eu, se
se confirmar o vaticínio do jornalista, com o alívio de não ter de pensar mais
no Nobel até o fim da vida.»
(Página 200)
12 de Outubro de 1994
«Diz-se em Lisboa que o Nobel está no papo de Lobo
Antunes. Pelos vistos, o jornalista brasileiro conhecido de Jorge Amado, sabia
do que falava. Também me dizem que Lobo Antunes já se encontra na Suécia.»
(Página 212)
13 de Outubro
«O Nobel foi para um escritor japonês, Kenzaburo
Oe. Afinal o jornalista estava enganado. Nelson de Matos até tinha feito
declarações à rádio, ou à televisão, não sei bem, dando como favas contadas a
vitória do seu editado. O que vale é que o ridículo, pacientíssimo, continua a
não matar. Quanto a mim, tenho de começar a pedir desculpa os meus amigos por
não ganhar o Nobel…»
(Página 213)
14 de Outubro de 1994
«Veio a
Lanzarote, para entrevistar-me, uma equipa de reportagem da TVI. Pessoal
simpático, um deles, Carlos de Oliveira, já meu conhecido. Perguntas muitas:
política, religião e, inevitavelmente, o Nobel. Já que o meu nome tinha andado
envolvido nesta outra espécie de bingo, aproveitei a ocasião para, de uma vez
para semre, pôr a claro o assunto, tal como o vejo: em primeiro lugar, o
dinheiro é dos suecos e eles dão-no a quem entendem; em segundo lugar, há que
acabar com esta história de andar como de mão estendida a implorar a esmolinha
de um Nobel; em terceiro lugar, é absurdo fazer depender o prestígio da
literatura portuguesa de se ter ou não se ter o Nobel; em quarto lugar, se o
cheque fosse, por exemplo, de dez mil dólares, o planeta dos escritores pouco
se importaria com ele; em quinto lugar, e concluindo, deixemo-nos de
hipocrisias e tenhamos a franqueza de reconhecer que, nesta comédia, o que
verdadeiramente conta é o dinheiro.»
(Página 214)
Volume III
23 de Maio de
1995
«Uma leitora na Feira: “Para o ano que vem teremos
mais “Cadernos”?”. Respondo medievalmente como de costume: “Vida havendo e
saúde não faltando…” E ela: “É que quero ver neles a notícia do Prémio Nobel…”
(Página 124)
Volume V
9 de Outubro de 1997
«Foi muito simples. Encontrávamo-nos na cozinha. Pilar e eu, sós, quando a rádio informou que o Prémio Nobel tinha sido atribuído a Dario Fo. Olhámo-nos tranquilamente (sim, tranquilamente, jurá-lo-ia se fosse necessário) e eu disse: «Pronto. Podemos voltar ao nosso sossego.» Amanhã partiremos para Colónia.»
(Página 176)
14 de Outubro de 1997
«Frankfurt.
Pilar telefonou hoje para casa, a saber se havia alguma novidade, e realmente,
sim, havia novidade, a mais inesperada de todas as possíveis, aquela que nunca
seríamos capazes de imaginar: nada mais nada menos que uma chamada telefónica
de Dario Fo e dizer: «Sou um ladrão, roubei-te o prémio. Um dia será a tua vez.
Abraço-te.» Mal saído do assombro em que a notícia me tinha deixado, disse a
Pilar: «Suponho que uma coisa assim nunca terá acontecido na história deste
prémio…», e Pilar, sábia, respondeu-me: «Não há que perder a confiança na
generosidade humana.»
(Página 178)
(Continua)
Este mundo não presta, venha outro.
Já por tempo de mais aqui andamos
A fingir de razões suficientes.
Sejamos cães do cão; sabemos tudo
De morder os mais fracos, se mandamos,
E de lamber as mãos, se dependentes.
José Saramago em Os
Poemas Possíveis
José Saramago
Alguns dos passos para se chegar ao único Nobel da
Literatura em português.
Não posso passar por livrarias, bancas de jornais.
Nas livrarias entro logo,
nas bancas de jornais fico a olhar.
Naquela longa Conversa que manteve com João Céu e Silva,
José Saramago revelou:
(CONTINUA)
Enquanto quase todos veem futebol catari, outros, tão poucos, vão pensando que o mundo está tão perigoso que causa arrepios. Marcelo avisa-nos – olha a novidade!... – Costa também, que o ano que há-de chegar, vai ser duro e exigente!
1.
A Polícia Judiciária
desmantelou uma rede de traficantes que exploravam trabalhadores agrícolas no
Alentejo com a falsa promessa de bons salários e alojamentos dignos. No que
mafiosos chamam alojamentos dignos, viviam mais de 70 pessoas a dormir num
alojamento com uma única casa de banho, com colchões espalhados pela casa e
ordenados entre 5 e 10 euros por semana.
Esta situação de
exploração humana nas explorações agrícolas espalhadas pelo país, existem há
vários anos sem que as autoridades governamentais, apesar de sucessivos
alertas, tomassem quaisquer providências.
Mas não existe um
Alto Comissário para as Migrações?
O SEF ainda está em
funções?
Que fazem os ministros no governo de maioria absoluta?
2.
A sobrevalorização do
preço das casas em Portugal está a bater recordes e é equiparável ao fenómeno
que também afecta outros países da União Europeia, sobretudo os mais ricos,
entre eles alguns Estados nórdicos como Suécia ou Dinamarca.
E os jovens do ensino
superior, que vêm para Lisboa com o fito de tirar um curso, não encontram
habitação a preços decentes e muitos desistem de estudar.
A mesma pergunta:
Que fazem os ministros do governo de maioria absoluta?
3.
No Café do Monte, Ana Cristina Leonardo lê a imprensa internacional:
«A aliança do Ocidente contra Vladimir Putin começa a revelar fraturas, explicou esta sexta-feira o jornal “POLITICO”: as principais autoridades europeias estão furiosas com a Administração Biden e acusaram agora os americanos de fazer uma fortuna com a guerra enquanto os países da UE sofrem. “Se olharmos com seriedade, o país que mais lucra com esta guerra são os Estados Unidos, porque vendem mais gás a preços mais altos e porque estão a vender mais armas”, garantiu um alto funcionário europeu à publicação. “Os Estados Unidos precisam de perceber que a opinião pública está a mudar em muitos países da UE.”
Enquanto tentam reduzir a sua dependência da energia russa, a UE
voltou-se para o gás dos EUA – mas o preço que os europeus pagam é quase quatro
vezes mais alto do que os mesmos combustíveis nos Estados Unidos. É demais para
os responsáveis de Bruxelas – o presidente francês, Emmanuel Macron, garantiu
que os altos preços do gás nos EUA não são “amigáveis” e o ministro da Economia
da Alemanha pediu a Washington que mostre mais “solidariedade” e ajude a
reduzir os custos de energia.
Diversos ministros e diplomatas expressaram a sua frustração com a
forma como o Governo de Biden simplesmente ignorou o impacto das suas políticas
económicas domésticas sobre os aliados europeus. Quando os líderes da UE
enfrentaram Biden sobre os altos preços do gás nos EUA na reunião do G20 em
Bali na semana passada, o presidente americano simplesmente parecia não saber
do assunto, segundo revelou fonte próxima.»
4.
Na compra de uma mesa
e vinte e quatro cadeiras para a residência oficial do primeiro-ministro, foram
gastos vinte e um mil euros.
Será que os ministros do governo de maioria absoluta, para além de empregos de consultoria jurídica que arranjam para amigos e familiares, sempre fazem alguma coisa?
5.
O governo estima
que a relocalização do Complexo Logístico da Bobadela vá custar seis milhões de
euros ao Estado, mas um documento das autarquias fala em 90 milhões.
O parque
logístico dos contentores da Bobadela terá de ser desactivado até final deste
ano para que toda aquela área fique disponível para apoio e realização das
Jornadas Mundiais da Juventude, que ocorrerão no Verão do próximo ano, com a
presença do Papa Francisco.
Contudo, até agora as autarquias ainda não sabem se os contentores ficam em Loures, ou se deslocam para Vila Franca de Xira ou para qualquer outra autarquia.
6.
Segundo dados do Censo de 2021, agravou-se o índice de envelhecimento e aumentou o número de estrangeiros a viver em Portugal.
Mais de 23% da população portuguesa era idosa,
o fenómeno de envelhecimento agravou-se na última década.
Acima de um
milhão de gente, vive sozinha.
A solidão não
pára de crescer.
É uma doença
crónica, dizem especialistas.
Há quem diga que
os centros comerciais, acima de tudo, existem para muitos poderem administrar a
sua solidão.
O poeta
Alexandre O’Neill dizia que a solidão procurada é boa, a que não é procurada,
torna-se muito chata.
Outro poeta,
José Gomes Ferreira, escreveu numa parede do quarto do filho: «A solidão é boa
para não se estar sozinho.»
Fernando Lopes
Graça morava na Parede. A pianista Olga Prats também. Numa noite de Verão, em
que o acompanhava a casa, Olga Prats ouviu o Graça dizer:
«Eu agora não queria ficar sozinho, fosse quem fosse,
homem ou mulher, rapaz ou rapariga, nem que fosse um cão.»
Lanço na mesa as cartas de jogar:
Os amores de cartão e as espadas,
Os losangos vermelhos de ouro falso,
A trilobada folia que ameaça.
Caso e descaso aas damas e os valetes,
Andam os reis pasmados nesta farsa.
E quando conto os pontos da vitória,
Sai-me de lá, a rir como perdido,
Na figura do bobo o meu retrato.
José Saramago em Os
Poemas Possíveis
José Saramago
«A pessoa preparar-se para a morte é a
grande finalidade da vida.»
«Se depois de eu morrer, quiserem
escrever a minha biografia, não há nada mais simples. Tem só duas datas – a da
minha nascença e da minha morte»
« Não só me diverti bastante quando li ‘As Intermitências da Morte’, como me comovi. Não se pode pedir mais a um escritor.»
«Dormitou numa cadeira, quis afundar-se num sono interminável, não
acordar nunca mais. Deitado no chão, à espera de um sinal que não vinha, o cão
olhava-o. Talvez a causa do abatimento do dono fosse a mulher que apareceu no
parque, pensou, afinal não era certo aquele provérbio que dizia que o que os
olhos não vêem, não o sente o coração. Os provérbios estão constantemente a
enganar-nos, concluiu o cão. Eram onze horas quando a campainha da porta tocou.
Algum vizinho com problemas, pensou o violoncelista, e levantou-se para ir
abrir. Boas noites, disse a mulher do camarote, pisando o limiar, Boas noites,
respondeu o músico, esforçando-se por dominar o espasmo que lhe contraía a
glote, Não me pede que entre, Claro que sim, faça o favor. Afastou-se para a
deixar passar, fechou a porta, tudo devagar, lentamente, para que o coração não
lhe explodisse. Com as pernas tremendo acompanhou-a à sala de música, com a mão
que tremia indicou-lhe a cadeira. Pensei que já se tivesse ido embora, disse,
Como vê, resolvi ficar, respondeu a mulher, Mas partirá amanhã, A isso me
comprometi, Suponho que veio para trazer a carta, que não a rasgou, Sim,
tenho-a aqui nesta bolsa, Dê-ma, então, Temos tempo, recordo ter-lhe dito que
as pressas são más conselheiras, Como queira, estou ao seu dispor, Di-lo a
sério, É o meu maior defeito, digo tudo a sério, mesmo quando faço rir,
principalmente quando faço rir, Nesse caso atrevo-me a pedir-lhe um favor,
Qual, Compense-me de ter faltado ontem ao concerto, Não vejo de que maneira,
Tem ali um piano, Nem pense nisso, sou um pianista medíocre, Ou o violoncelo, É
outra cousa, sim, poderei tocar-lhe uma ou duas peças se faz muita questão,
Posso escolher, perguntou a mulher, Sim, mas só o que estiver ao meu alcance,
dentro das minhas possibilidades. A mulher pegou no caderno da suite número
seis de bach e disse, Isto, É muito longa, leva mais de meia hora, e já começa
a ser tarde, Repito-lhe que temos tempo, Há uma passagem no prelúdio em que
tenho dificuldades, Não importa, salta-lhe por cima quando lá chegar, disse a
mulher, ou nem será preciso, vai ver que tocará ainda melhor que rostropovitch.
O violoncelista sorriu, Pode ter a certeza. Abriu o caderno sobre o atril,
respirou fundo, colocou a mão esquerda no braço do violoncelo, a mão direita
conduziu o arco até quase roçar as cordas, e começou. De mais sabia ele que não
era rostropovitch, que não passava de um solista de orquestra quando o acaso de
um programa assim o exigia, mas aqui, perante esta mulher, com o seu cão
deitado aos pés, a esta hora da noite, rodeado de livros, de cadernos de
música, de partituras, era o próprio johann sebastian bach compondo em cöthen o
que mais tarde seria chamado opus mil e doze, obras elas quase tantas como
foram as da criação. A passagem difícil foi transposta sem que ele se tivesse
apercebido da proeza que havia cometido, mãos felizes faziam murmurar, falar,
cantar, rugir o violoncelo, eis o que faltou a rostropovitch, esta sala de
música, esta hora, esta mulher. Quando ele terminou, as mãos dela já não
estavam frias, as suas ardiam, por isso foi que as mãos se deram às mãos e não
se estranharam. Passava muito da uma hora da madrugada quando o violoncelista
perguntou, Quer que chame um táxi para a levar ao hotel, e a mulher respondeu,
Não, ficarei contigo, e ofereceu- lhe a boca. Entraram no quarto, despiram-se e
o que estava escrito que aconteceria, aconteceu enfim, e outra vez, e outra
ainda. Ele adormeceu, ela não. Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa
que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. Olhou em redor como
se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida
entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada
em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, acendeu um
fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar,
reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o
contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de
todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia
destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem
e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que
o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém
morreu.»
José Saramago em As Intermitências da Morte, página 212
Quem diz tempo diz lugar
Dizer hoje é o mesmo que
Dizer aqui onde estamos
Quando o porquê é porque
Por isso eu hoje antecipo
Mar fundo futuro monte
No ponto do amanhã
A hora do horizonte
Esta certeza aqui vem
Da incerteza dos passos
Dos descompassos do tempo
Dos braços noutros abraços
Porque o tempo e o lugar
Não eram ontem então
Eram circuitos em volta
E fusos de confusão
Mesmo o aqui deste agora
É por enquanto a parcela
Do lugar certo e da hora
Que no lugar se revela
Por isso eu hoje antecipo
Mar fundo futuro monte
O ponto da amanhã
Na hora do horizonte
José Saramago em Provàvelmente Alegria
Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do
trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, não vamos a parte nenhuma.
José Saramago
Desde que saiu o 1º volume de Os Cadernos de Lanzarote se percebeu, facilmente, que os que desprezaram a ideia, estavam mais interessados
em apoucar José Saramago do que outra coisa qualquer. Não tardaram a chamar-lhe
narciso, não sabendo – nem querem saber! – que poderão existir narcisos de
excelência.
Numa entrevista ao JL, sobre o começo da publicação dos Cadernos, Saramago
disse:
« Desde que o Eduardo Prado Coelho declarou que lhe
deu «um grande gozo» escrever Tudo O Que Não Escrevi, parece que se esperam
afirmações de um «gozo» pelo menos igual por parte daqueles que também praticam
o ofício. Por meu lado, o que me preocupa é o «gozo», o «prazer», que possam
vir a ter os leitores diante do que,
para mim, foi trabalho».
São diversos os temas e os problemas que Saramago a aflora nos seus Cadernos. Muitos dos apontamentos estão datados no tempo, outros
não são fáceis de clarificar, por não sabermos de quem Saramago fala, ou quer
falar, e o porquê, outros, ou aqueles em que o pé não joga com a chinela. Mas a maior parte são clarinhos
como água: as fricções invejosas de Lobo Antunes que sugeriu a Saramago que devia
deixar um parêntese aberto à noite para arejar a prosa ou quando afirmou que
Saramago era um pobre inútil, pois existem muitos escritores que são
propagandistas de si mesmos.
Em resumo: críticos, outras gentes, entenderam que os Cadernos estão repletos de fragilidades, vaidades.
Entendo estes Cadernos,
nunca como uma obra marginal, antes uma ajuda, boa ajuda, na finalidade de compreender,
para além de outras suas obras, José Saramago, o escritor e o cidadão.
29 de Abril de 1993
A propósito da publicação em França do seu Requiem,
Antonio Tabucchi dá uma entrevista a Le Monde. Em certa altura, o entrevistador,
René de Ceccaty, informa os seus leitores de que Tabucchi é o principal
introdutor da literatura portuguesa em Itália, asserção que não pretendo
discutir, mas que, desde logo, seria bastante mais exacta se, onde se diz é, se
tivesse dito foi. O que sobretudo me interessa aqui é o que vem a seguir, posto
no francês próprio para que não se percam nem o sabor nem o rigor: “Toutefois,
si l’on évoque José Saramago, Tabucchi prend un air absent et détourne le
regard. Manifestement, c’est vers une autre littérature que ses affinités le
dirigent.” Porque René de Ceccatty passou de imediato a outro tema, porque, por
distracção ou delicadeza, não perguntou a Tabucchi a razão profunda daquele “ar
ausente” e daquele “desvio do olhar”, devo ter perdido a grande ocasião de
conhecer, enfim, os motivos da hostilidade mal disfarçada e da evidente frieza
que Tabucchi manifesta sempre que tem de falar de mim ou comigo. Acontece na
minha presença, posso imaginar, a partir de agora, como será a ausência. Disse
que perdi a ocasião, mas talvez não seja assim. Toda a entrevista se desenrola
no campo da relação vivencial e intelectual de Tabucchi com Pessoa, e foi
justamente isto, este discurso fechado, este ritornelo obsessivo, que, num
repente, me pôs a funcionar a intuição: Antonio Tabucchi não me perdoará nunca
ter escrito O Ano da Morte de Ricardo Reis. Herdeiro, ele, como faz questão de
se mostrar, de Pessoa, tanto no físico quanto no mental, viu aparecer nas mãos
de outrem aquilo que teria sido a coroa da sua vida, se se tivesse lembrado a
horas e tivesse a vontade necessária: narrar, em verdadeiro romance, o regresso
e a morte de Ricardo Reis, ser Reis e ser Pessoa, por um tempo, humildemente –
e depois retirar-se, porque o mundo é vasto de mais para andarmos cá a contar
sempre as mesmas histórias. Admito que a verdade possa não coincidir, ponto por
ponto, com estas presunções minhas, mas reconheça-se, ao menos, que se trata de
uma boa hipótese de trabalho… Como se já não fosse suficiente carrego ter de
levar às costas a inveja dos portugueses, sai-me agora ao caminho este italiano
que eu tinha por amigo, com um arzinho falsamente ausente, desviando os olhos,
a fingir que não me vê.
José Saramago, Cadernos de Lanzarote, página 22
Como um vidro estalado… A quem me ler
Não direi, já agora, se esta imagem
Vem serena dos ramos que perderam
As folhas contra o céu, ou se mastigo
Qualquer raiva escondida.
Como doendo, ou sendo, ou mastigando,
Sejam rendas aéreas, alma ferida,
Fecho. Brusco, o poema onde não digo.
José Saramago em Provàvelmente
Alegria
José Saramago em Os Apontamentos
Luiz Pacheco teve, um dia,
uma das suas saídas, roçando o genial, aquelas que ficam para a História:
«O Saramago é o grande vencedor do 25 de Novembro».
Numa entrevista concedida a Ernesto Sampaio,
e publicada no Diário de Lisboa de 8 de Março de 1980, José Saramago sintetiza
como é que livro se levantou do chão:
Levantado Chão: um livro pensado durante dois anos, escrito em cinco meses, o começo numa escrita normal, «como toda a gente faz», e depois, «a folhas vinte e quatro ou vinte e cinco, algo começa a suceder uma das coisas mais bonitas que me aconteceram» e fica o autor perante a reinvenção da sua linguagem, a linguagem saramaguiana.
Francisco Vale, hoje editor da Relógio d’Água, ao tempo
(1981) colaborador de O Jornal, fazia o balanço literário de 1981 («Não foi
infecundo o chão das nossas letras no ano que termina»).
- Qual a
importância de Levantado do Chão?
- Responda o futuro que é obrigação sua. Para mim, autor, tem esta importância toda: falhava-me a vida se não o tivesse escrito. E, como uma graça nunca vem só, descobri que com o Lenatando do Chão aprendi, enfim, a escrever, isto é, a amar profundamente as palavras.»
E se os ossos rangessem quando os gritos
Dentro no sangue negro se amordaçaram?
E se os olhos uivassem quando a lágrima
Grossa de sal amargo rasga a pele?
E se as unhas mudadas em navalhas
Abrissem dez caminhos de desforra?
E se os versos doessem mastigados
Entre os dentes que mordem o vazio?
(Mais perguntas, amor? Antes calados.)
José Saramago em Provàvelmente
Alegria
Apenas o vazio da porta e não a porta.
José Saramago em O Ano de 1393.
Legenda: pintura de Raymomd Wintz.
Por causa dos Sublinhados, dos Poemas,
dos Postais, neste mês de Centenário de José Saramago, não voltei a autores, a
capas que normalmente por aqui habitualmente surjem. Um desses autores é o Manuel António
Pina.
Mas hoje, mato dois coelhos com uma
cajadada:
«Um dia destes hei-de escrever das invejas e das calúnias de que este homem cordial, generoso, corajoso e bom era objecto. Agora, é só para dizer que o dia de que falo era nítido, claro, e resguardado para mim e para a minha amizade para com o Zé. E acrescentar que, entre nós, nunca houve um adeus.
Provavelmente, apenas provavelmente Saramago não veria ser-lhe atribuído o nobel da Liertuta se um tal de Sousa Lar, subsecretário da cultura sendo secretario Santana Lopes e primeiro-ministro Cavaco Silva.»
Tenho uma ideia, baseada em mero pensamento pessoal, porque nunca vi escrito, de que Saramago já teria
pensado em mudar-se para Lanzarote, uma paisagem, que terá entendido, lhe faria
muito bem às suas ideias e à sua escrita, assim como Hélia Correia, como ajuda
extra, só gostar de escrever em dias de chuva, mas aproveitou o episódio do
anedótico Sousa Lara & Cª, para deixar expresso, bem expresso, que foi por
causa disso que passou a viver em Lanzarote.
Segundo notícias reveladas pelos jornais e televisões portugueses, o embaixador de Portugal no Catar, foi chamado pelas autoridades daquele país, mais precisamente pelo vice primeiro-ministro, para ser confrontado com as recentes declarações do presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e do primeiro-ministro, António Costa, que consideraram «hostis».
Tanto Marcelo Rebelo
de Sousa como António Costa vincaram que o Catar é um país que não respeita os
direitos humanos, isto a propósito das deslocações de ambos para apoiar, in
loco, a Selecção portuguesa.
As notícias referem
ainda que o Catar só não tomará «medidas mais drásticas» devido à
«histórica amizade entre os dois países».
A política tem que
ser desempenhada por gente que se lava todos os dias, o que muito raramente se
pratica em Portugal.
A inteligência, e não
o oportunismo saloio, exigia, que ambos, não se deslocassem ao Catar para ver s
jogos da selecção.
Evitavam situações
dúbias, ao mesmo tempo, que provavelmente impediriam que gente esquisita, que
também deveria lavar-se todos os dias, nos enviassem bofetadas-mensagens-de-luva-branca.
Tudo isto ainda é
mais desastroso e lamentável, quando Marcelo e Costa, demais autoridades portuguesas, não têm olhado para as
violações que os direitos humanos e dos trabalhadores, sejam, de há alguns anos
a esta parte, violados e perpetrados por mafias das mais diversas
nacionalidades.
O Mundial foi atribuído ao Catar, uma monarquia arcaica e
repressiva, através de processos de alta corrupção que já deram origem a
diversos processos judiciais.
Acresce a carta que Gianni Infantino, presidente da FIFA,
enviou às selecções que estão a disputar o campeonato um comunicado, e onde se pode ler:
«Com o Campeonato do Mundo à porta e o jogo de
abertura marcado para daqui a cerca de duas semanas, a FIFA pretende que as
seleções participantes se concentrem em assuntos do futebol e não em polémicas
relacionadas com a realização da prova no Catar.
Não deixem que o futebol seja arrastado para todas as
batalhas políticas e ideológicas que existem.
Por favor, vamos agora concentrar-nos no futebol.»
Desde que o Mundial foi atribuído ao Catar, sucederam-se
as polémicas relacionadas com direitos humanos, e várias selecções como a
Dinamarca, a Austrália, a Alemanha, Os Estados Unidos, têm mostrado vontade de
ter um papel activo na luta contra a descriminação sexual e o sofrimento dos
trabalhadores migrantes que trabalharam a baixo custo na construção dos
estádios e das infraestruturas necessárias à realização do Mundial.
Como forma de protesto contra a censura da FIFA sobre a proibição da utilização de braçadeiras a favor da luta LGBTI, ontem, os jogadores alemães, taparam a boca na habitual fotografia da formação inicial. Um protesto que desafia a FIFA que, ditatorialmente teria avisado as diversas selecções que seriam severamente punidas caso infringissem as regras de moral e decência que vigoram no Catar.
Tome-se um poeta não castrado,
Uma nuvem de sonho, uma flor,
Três gotas de amargura, um tom de fado,
Uma veia sangrando de terror.
Nesta massa que ferve e se contorce
Verta-se a luz dum corpo de mulher,
Duma pitada de morte se reforce,
Que o amor do poeta assim requer.
José Saramago em Os Poemas Possíveis
José Saramago
O saramaguiano que sou, está nesse lote dos que, ou por não se ter entendido o livro como se dever entender o que se lê, ou por motivos não explicados devidamente, não têm pela obra o mesmo gosto que dedicam a outras obras de Saramago.
No seu livro A Estátua e a Pedra, Saramago adianta como vê a Península Ibérica desprendendo-se da Europa, navegando Atlântico fora, a vogar para o seu lugar próprio entre a América do Sul e a África Central.
«A Jangada de Pedra , como se sabe, é a Península Ibérica, que se
separa sem trauma da Europa e que vai flutuando pelo mar fora como uma jangada,
come una zattera, até parar, até se fixar entre a América do Sul e a África.
Uma ilha, a Península Ibérica transformada numa ilha, e enfim o livro foi
entendido de diversas maneiras sobretudo negativas. Foi dito e redito e mil vezes
proclamado que era um livro escrito contra a Europa como se um pobre romancista
pudesse escrever qualquer coisa contra a Europa. E quem leu o livro
efectivamente com olhos de ler e sobretudo quem conhece a trajectória do autor
também entende que o leitor reage em relação a um livro e não tem que fazer
passar as suas opiniões sobre esse livro, por um conhecimento que ele tenha
sobre a própria vida do autor, e aquilo que ele diz, e aquilo que ele faz. Mas
alguém, e que ainda por cima nem sequer era um crítico literário, mas um
político catalão, escreveu um artigo extremamente interessante em que ele dizia
mais ou menos isto, Não nos equivoquemos, este senhor não quer que a Península
Ibérica se separe da Europa, aquilo que ele pretende é arrastar, levar a Europa
para o sul, o que seria uma transformação geológica tremenda, quer dizer, toda
a Europa deslocando-se em direcção, não já só a Península Ibérica mas toda a
Europa deslocando-se para o sul. Claro que isto tem que ver, já se sabe, com a
velha questão norte sul, a velha questão colonizadores colonizados, a velha
questão exploradores explorados, enfim, a dicotomia por um lado e a antinomia
por outro lado norte sul, tudo isso, com tudo o que leva de conceitos de
supremacia rácica, de domínio económico, de, digamos, imperialismo. Tudo isso,
aquilo que está implícito no livro, ou pelo menos para um leitor que o leia
assim, pode ser lido de distintas formas, claro está. É que o autor gostaria
que a Europa deixasse de ser aquilo que sempre foi para tornar-se, sem deixar
de ser aquilo que foi, porque as tradições pesam, a cultura pesa, a história
pesa, mas para converter-se de alguma forma numa entidade moral que
acrescentasse a tudo aquilo que ela tem sido uma dimensão ética, que até agora
não teve, e que fosse para o mundo o elemento de transformação de valores e de
reconhecimento de direitos de povos que até hoje, praticamente até hoje, e com
certeza também no futuro, de uma forma ou outra, têm sido e vão continuar a ser
explorados. A Jangada de Pedra foi, na minha cabeça, uma espécie de proposta
para a formação de uma nova bacia cultural que não seria já, porque essa já
cumpriu o seu papel histórico, a bacia cultural mediterrânica, mas sim aquilo
que seria a bacia cultural, que não tem forma de bacia, como é o caso, ao
contrário do que acontece com o Mediterrâneo, que praticamente é um grande
lago, mas que seria de uma certa forma isso a que os espanhóis chamam uma
cuenca cultural do Atlântico Sul. Quer dizer que entre a América do Sul e a
África, a Península Ibérica estaria aí, tornada ilha, e mesmo por ser uma ilha,
cercada de mar por todos os lados, podendo comunicar com tudo o que está fora
dela. É outra vez uma utopia, claro, nós estamos um pouco cansados de falar de
utopias, enfim, e o livro ficou aí e portanto do romance histórico também não
tem nada.»
Legenda: cartaz do filme de George Suarez.
O Santo em Miami
Leslie Charteris
Tradução: Fernanda
Pinto Rodrigues
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº
216
Livros do Brasil, Lisboa s/d
Simon Templar estava estendido na areia, defronte da modesta moradia de vinte cinco divisões de Lawrence Gilbeck, embalado pelo suave desintegrar, na encosta a seus pés, das vagas coroadas de espuma branca que vinham do Atlântico.
Tão perto e tão longe!...
Ah!, sim… os direitos
dos trabalhadores…
Os suspeitos integram uma estrutura criminosa dedicada à exploração do
trabalho de cidadãos imigrantes, na sua maioria, aliciados nos seus países de
origem, tais como, Roménia, Moldávia, Índia, Senegal, Paquistão, Marrocos,
Argélia, entre outros, para virem trabalhar em explorações agrícolas”, refere o
comunicado. As explorações agrícolas onde estas pessoas eram alvo de exploração
situam-se em Beja, Cuba e Ferreira do Alentejo, avançou à Lusa uma fonte ligada
à investigação.»
Marcelo Rebelo de
Sousa, a caminho do 1º jogo de Portugal no Mundial da vergonha, declarou,
solenemente, a quem o quis ouvir, que, chegado ao aeroporto de Doha, desfiaria
filosofias várias, sobre direitos humanos, direitos dos trabalhadores e mais
qualquer coisa que agora não lembro…
O 25 de Abril foi no
outro século, não foi?!...
Pois o tempo não pára, nem importa
Que os dias que vivemos aproximem
O copo de água amarga colocado
Onde a sede da vida se exaspera.
Não contemos os dias que passaram:
Hoje foi que nascemos. Só agora
A vida começou, e, longe ainda,
Pode a morte cansar à nossa espera.
José Saramago em Os Poemas Possíveis
José Saramago
«Era uma vez um rei que
fez promessa de levantar um convento em Mafra. Era uma vez a gente que
construiu esse convento. Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha
poderes. Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido. Era uma vez.»
Estavam a ser sobrevoados
pela Passarola de Bartolomeu de Gusmão,
«uma história que nos
deixa sem fôlego», no
sábio dizer de Armando Silva Carvalho.
Ainda Saramago:
«Dorme Baltasar no lado direito da enxerga, desde a primeira noite aí dorme, porque é desse lado o seu braço inteiro, e ao voltar-se para Blimunda pode, com ele, cingi-la contra si, correr-lhe os dedos desde a nuca até à cintura, e mais abaixo ainda se os sentidos de um e do outro despertaram no calor do sono e na representação do sonho, ou já acordadíssimos iam quando se deitaram, que este casal, ilegítimo por sua própria vontade, não sacramentado na igreja, cuida pouco de regras e respeitos, e se a ele apeteceu, a ela apetecerá, e se ela quis, quererá ele. Talvez ande por aqui obra de outro mais secreto sacramento, a cruz e o sinal feitos e traçados com o sangue da virgindade rasgada, quando, à luz amarela do candil, estando ambos deitados de costas, repousando, e, por primeira infracção aos usos, nus como suas mães os tinham parido, Blimunda recolheu da enxerga, entre as pernas, o vivíssimo sangue, e nessa espécie comungaram, se não é heresia dizê-lo ou, mais ainda, tê-lo feito. Meses inteiros se passaram desde então, o ano é já outro, ouve-se cair a chuva no telhado, há grandes ventos sobre o rio e a barra, e, apesar de tão próxima a madrugada, parece escura noite. Outro se enganaria, mas não Baltasar, que sempre acorda à mesma hora, muito antes de nascer o sol, hábito inquieto de soldado, e fica alerta a ver retirar-se devagar a escuridão de cima das coisas e das pessoas, a sentir aquele grande alívio que levanta o peito e é o suspiro do dia, o primeiro e impreciso traço grisalho das frinchas, até que um leve rumor acorda Blimunda e outro som começa e se prolonga, infalível, é Blimunda a comer o seu pão, e depois que o comeu abre os olhos, vira-se para Baltasar e descansa a cabeça sobre o ombro dele, ao mesmo tempo que pousa a mão esquerda no lugar da mão ausente, braço sobre braço, pulso sobre pulso, é a vida, quanto pode, emendando a morte. Mas hoje não será assim. Um dia e outro dia perguntou Baltasar a Blimunda por que comia todas as manhãs antes de abrir os olhos, perguntou ao padre Bartolomeu Lourenço que segredo era este, ela respondeu-lhe uma vez que se acostumara a isso em criança, ele disse que se tratava de um grande mistério, tão grande que voar faria figura de pequena coisa, comparando. Hoje se saberá.»
Se a música é o alimento do amor não
parem de tocar. Dêem-me música em excesso; tanta que, depois de saciar, mate de
náusea o apetite.
William Shakespeare
Legenda: Harpista numa rua de Dublin, Agosto de 1953. Os irlandeses tocam este instrumento desde o século X. Fotografia de Claude Jacoby.
Da exposição de Claude Jacoby, curadoria de Jorge Calado, Museu do Neo-Realismo em Vila Franca de Xira até 23 de Abril de 2023.