domingo, 22 de janeiro de 2017

OLHAR AS CAPAS


Correspondência
1949-1978

Jorge de Sena/Eugénio de Andrade
Organização: Mécia de Sena
Apresentação: Isabel de Sena
Notas: Jorge Fazenda Lourenço
Capa: Ilídio J.B. Vasco
Guerra e Paz, Lisboa, Outubro de 2016

Querido Jorge:

Recebi simultaneamente a tua carta e original de Cavafy, há já alguns dias, mas não tive ocasião de te escrever logo após a leitura dos poemas, como gostaria de ter feito. Comparei mesmo alguns poemas com a tradução do Pontani. Como imaginava, a tua tradução é incomparável, particularmente, os poemas breves, os mais difíceis de traduzir, pelo risco que alguns correm de se transformarem numa quase banalidade madrigalesca, o que acontecia com as traduções francesas, a que não escapam mesmo as traduções mais belas. É um prodígio o que consegues. E se podes afirmar, apoiado em Goethe, que não há grande poema que não possa ser traduzido, seria indispensável juntar que tudo vai do tradutor. Ora o Cavafy teve a sorte de te encontrar no caminho. Se dou mais relevo às traduções dos «eróticos » (achando igualmente notável o que fizeste dos três poemas do Cavafy que prefiro – «O deus abandona Marco António», «Ítaca» e «À espera dos bárbaros») é tão-só porque considero a tradução de tais poemas mais difíceis que os outros. A matéria, além de muito frágil é, em outro sentido, delicada. Tu resolves tudo com uma franqueza, uma elegância e uma frescura verdadeiramente notáveis. Reparo até que os poemas têm uma força explosiva que só intuíra nas traduções francesas ou italianas, receando até que tais poemas constituam um pequeno escândalo, justamente, como muito bem referes no teu prefácio, que é muito corajoso, pela nobreza moral que revelam, isentos, como são, dos perversos conceitos de «pecado».
As traduções deram-me uma grande alegria.Este livro pertence-me. A primeira vez que traduziste o Cavafy, lembras-te?, foi para mim, numa noite em tua casa, talvez depois da leitura de As Evidências. Quando apareceram as tuas primeiras traduções no Comércio, estimulei-te, através de correspondência, no sentido de publicares novas traduções. Quando o editor me pediu a indicação de alguns poetas estrangeiros para a colecção que iniciou com o Lorca, o Cavafy, traduzido por ti, foi dos primeiros nomes que apontei. «Um deus abandona Marco António» e «A origem» são poemas que me acompanham desde a tua tradução no Comércio. (Pude assim notar agora as variantes, importantíssimas, lendo agora «A Origem» neste teu volume).
Felizmente que a alegria que me deu o teu livro me compensou da melancolia da tua carta. O que sobretudo lamento, nesta história do prémio, é que por via de o não receberes sejamos privados de nova visita tua. Tu já sabes o descrédito que tem para mim a chamada glória literária. Ser-se Namora, para me servir da tua expressão, é coisa que suponho não interessa a ninguém. Que importa o êxito? Tu não és um escritor para multidões, não no fundo o desejaste nunca ser. De um certo êxito suponho que terás até desprezo. Podes estar tranquilo: a tua obra está aí, e brilha, e aquece. Ela pertence aos melhores, como bem sabes. É pena, realmente, que a tal ilha, Taiti ou outra qualquer (a minha fica no mar grego), não esteja nunca senão no nosso desejo. Que havemos de fazer? Suportar é tudo – não foi o Rilke que disse? Suportar– não há para nós outra solução sob pena de abdicarmos de sermos homens.
Na próxima carta já te direi quais são os teus 50 poemas que prefiro. Tenho o maior gosto em indicar-tos.
Lembranças afectuosas à Mécia. Para ti o maior abraço do muito
teu,
Eugénio

(Carta de Eugénio de Andrade a Jorge de Sena, datada de 21 de Maio de 1969)

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