Correspondência
1949-1978
Jorge de
Sena/Eugénio de Andrade
Organização: Mécia
de Sena
Apresentação:
Isabel de Sena
Notas: Jorge
Fazenda Lourenço
Capa: Ilídio
J.B. Vasco
Guerra e Paz,
Lisboa, Outubro de 2016
Querido Jorge:
Recebi simultaneamente a tua carta e original de Cavafy,
há já alguns dias, mas não tive ocasião de te escrever logo após a leitura
dos poemas, como gostaria de ter feito. Comparei mesmo alguns poemas com a
tradução do Pontani. Como imaginava, a tua tradução é incomparável,
particularmente, os poemas breves, os mais difíceis de traduzir, pelo risco que
alguns correm de se transformarem numa quase banalidade madrigalesca, o que
acontecia com as traduções francesas, a que não escapam mesmo as traduções mais
belas. É um prodígio o que consegues. E se podes afirmar, apoiado em Goethe,
que não há grande poema que não possa ser traduzido, seria indispensável juntar
que tudo vai do tradutor. Ora o Cavafy teve a sorte de te encontrar no caminho.
Se dou mais relevo às traduções dos «eróticos » (achando igualmente notável o
que fizeste dos três poemas do Cavafy que prefiro – «O deus abandona Marco
António», «Ítaca» e «À espera dos bárbaros») é tão-só porque considero a
tradução de tais poemas mais difíceis que os outros. A matéria, além de muito
frágil é, em outro sentido, delicada. Tu resolves tudo com uma franqueza, uma
elegância e uma frescura verdadeiramente notáveis. Reparo até que os poemas têm
uma força explosiva que só intuíra nas traduções francesas ou italianas,
receando até que tais poemas constituam um pequeno escândalo, justamente, como
muito bem referes no teu prefácio, que é muito corajoso, pela nobreza moral que
revelam, isentos, como são, dos perversos conceitos de «pecado».
As traduções deram-me uma grande alegria.Este livro
pertence-me. A primeira vez que traduziste o Cavafy, lembras-te?, foi para mim,
numa noite em tua casa, talvez depois da leitura de As Evidências. Quando
apareceram as tuas primeiras traduções no Comércio, estimulei-te, através
de correspondência, no sentido de publicares novas traduções. Quando o editor
me pediu a indicação de alguns poetas estrangeiros para a colecção que iniciou
com o Lorca, o Cavafy, traduzido por ti, foi dos primeiros nomes que apontei.
«Um deus abandona Marco António» e «A origem» são poemas que me acompanham
desde a tua tradução no Comércio. (Pude assim notar agora as variantes,
importantíssimas, lendo agora «A Origem» neste teu volume).
Felizmente que a alegria que me deu o teu livro me
compensou da melancolia da tua carta. O que sobretudo lamento, nesta história
do prémio, é que por via de o não receberes sejamos privados de nova visita
tua. Tu já sabes o descrédito que tem para mim a chamada glória literária.
Ser-se Namora, para me servir da tua expressão, é coisa que suponho não
interessa a ninguém. Que importa o êxito? Tu não és um escritor para multidões,
não no fundo o desejaste nunca ser. De um certo êxito suponho que terás até desprezo.
Podes estar tranquilo: a tua obra está aí, e brilha, e aquece. Ela pertence aos
melhores, como bem sabes. É pena, realmente, que a tal ilha, Taiti ou outra
qualquer (a minha fica no mar grego), não esteja nunca senão no nosso desejo.
Que havemos de fazer? Suportar é tudo – não foi o Rilke que disse?
Suportar– não há para nós outra solução sob pena de abdicarmos de sermos
homens.
Na próxima carta já te direi quais são os teus 50
poemas que prefiro. Tenho o maior gosto em indicar-tos.
Lembranças afectuosas à Mécia. Para ti o maior abraço
do muito
teu,
Eugénio
(Carta de Eugénio
de Andrade a Jorge de Sena, datada de 21 de Maio de 1969)
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