Tirando umas constipações anuais e uma ou outra dor de
dentes, Rómulo nunca teve incómodos de saúde. Não praticava exercício físico,
bebia um copo de vinho às refeições, deixou de fumar aos cinquenta anos. Andava
a pé, é certo. E isso era um bom exercício físico, se assim quisermos chamar, o
andar a pé. Se havia coisa que ele detestava era o «clássico» exercício físico,
a ginástica, a natação, essas atividades todas! E quase nunca se sentava. Comia
de tudo, carne e peixe e arroz e batatas e legumes. Quase todos os dias da
vida, ao jantar, à sobremesa, comia uma laranja. O ato de descascar a laranja
não é concebível por palavras. Havia ali um entendimento entre ele e a faca e o
garfo e o fruto.
Uma ritualização diária. Um final perfeito de
refeição. Uma entrega a pensamentos que se materializavam e concretizavam nessa
preparação metódica de fim de «missa», no princípio da noite.
Poderá parecer estranha, esta descrição da laranja
diária, mas eu considero-a importante. Mais um passo na ordem de uma vida que
se pretendeu harmoniosa e muito rigorosa.
A laranja no meio do prato. O garfo espetado no polo
superior que fazia com que a fixasse com suavidade e, ao mesmo tempo e a seu
tempo, a rodasse. A faca a descer desse polo, longitudinalmente, rodando,
deslizando, cortando, a casca a sair em fatias todas da mesma largura. A casca
fina, quase transparente. De modo que a laranja apresentava-se agora não cor de
laranja, mas branca. Iniciava, então o mesmo processo de exatidão, agora com
muito mais cuidado, pois a pele finíssima, a pele branca colada à polpa, saía
com mais dificuldade. Lá ia. De cima para baixo e sempre à volta. No prato,
amontoava-se a um canto a camada das cascas. Primeiro a casca de fora, por cima
a película branca. Tudo organizado.
Finalmente, a faca bem afiada cortava uma rodela de
laranja. E outra, E outra. Depois, voltava a laranja e cortava outra rodela. E
outra, E outra. Até restar a parte comprida com as nervuras do meio, que era
também colocada por cima das cascas todas. Agora o prato de sobremesa apresentava
uma coroa de rodelas de laranja disposta do centro para a beira. Seguia-se a
limpeza dos caroços, Um por um, com a ponta da faca, iam saltando todos, mas
com cuidado para não estragar nem romper a fatia. Esta operação levava o seu
tempo. Um certo tempo nunca perdido, pois os pensamentos andavam por ali a
rodar, a rodar como a própria laranja, e a prova disso é que o seu olhar estava
absolutamente concentrado, naquela concentração que só um total alheamento e
algum automatismo permite.
Enfim, a boca! A caverna natural de todos os prazeres,
onde a fibra do mundo se derrete.
Cristina
Carvalho em Rómulo de Carvalho/António Gedeão, Príncipe Perfeito
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