Há um pedacinho nas Férias
de Agosto de Cesare Pavese em que se lê: «… e era já manhã, um outro dia tranquilo. Recordo o perfume quente, as
vozes nas ruas. Sei onde cai a uma certa hora a quadra do sol na tijoleira da
sala.»
Eu, ainda hoje, recordo a intensidade do sol, as vozes no
quiosque, em Manteigas, quando olhei a capa do «24 Horas» e li que José Saramago poderia ganhar o Nobel. Comprei o
jornal, não que eu acreditasse que alguma vez a Academia Sueca faria a
atribuição do Nobel a um escritor de língua portuguesa e muito menos a um
escritor português.
Mas aconteceu.
Um escritor português ganhou o Nobel, foi o primeiro.
Terá sido o último?
Um país então levantou-se em alegria, escreveu na altura
Eduardo Prado Coelho:
«É possível, como
se viu nesta semana, que um país se levante em alegria porque alguém ganhou um
prémio de literatura.»
Muitos já terão esquecido essa alegria.
Esteve bem a Fundação José Saramago, pelos 20 anos da
atribuição do Nobel, em publicar um livro,
Um País Levantado em Alegria, da autoria de Ricardo Viel em que se desenha o
caminho do que foi esse acontecimento, algo que se perdeu nas páginas dos
jornais da época, acrescentando episódios desconhecidos.
Em cento e setenta páginas viajamos por esse tempo que eu,
mais alguns, direi inesquecível, e disso se dará conta por estes dias de triste
e terrível confinamento.
O livro abre com um texto de Eduardo Lourenço a que
chamou «A mão esquerda de Deus…»:
O merecido sucesso
de José Saramago coroa um destino de escritor que deve tudo á violência da sua
vontade de escalar os céus, sem pressa, dando tempo ao tempo. José saramago
pertence a uma linhagem mais rara do que se julga, a dos que escrevem depois de
ter vivido. E à mais rara ainda, sobretudo na nossa tradição, de não ceder à
natural tentação de se vingar da vida, do mundo, da História, glosando compulsivamente
a sua experiência subjectiva e fazendo girar o mundo à sua volta. Isso não o
coloca fora de uma mais arcaica tradição nacional: a do alegorismo que é sempre
espelho de uma verdade já revelada. No horizonte da sua ficção há essa íntima convicção
de uma verdade de rosto exclusivamente humano que lhe servirá para invocar, por
contraste, a inumanidade ofuscante que caracteriza o tempo da cegueira que nos
coube. E lhe coube. Salvou-o da hagiografia e do dogmatismo um miraculoso dom
de ironia e uma quase inexplicável candura ou simplicidade diante da vida, que
a vontade e poderio e o cego arbítrio tantas vezes desvirtuam.
De hoje em diante
haverá um «mito Saramago» como existe em torno de Fernando Pessoa, que, como
todos os mitos, não tem tanto a ver com o valor das respectivas obras, mas com
o vazio que vêm preencher no nosso imaginário nacional em busca do
reconhecimento universal. Toda a nossa cultura beneficiará dessa aura que
poderia ter recaído sobre outros, mas lhe coube e assenta como um diadema
invisível ao autor de Todos os Nomes,
a mais bela e profunda das suas alegorias.»
2 comentários:
Que belo texto (e que excelente foto)!
Obrigado Sammy por estas pérolas
Obrigado pelas palavras.
Nestes momentos tão difíceis que temos de enfrentar, é gratificante ouvir essas palavras.
Ainda hoje sinto o júbilo que senti quando soube da atribuição do Nobel da Literatura a José Saramago.
«Um país levantado em alegria», nas felizes palavras de Eduardo Prado Coelho e, só depois de nos ter deixado, muitos ficaram a saber o quanto tinham sido injustos nas maneiras com que muitas vezes trataram o Eduardo.
Um país em alegria, só que passado pouco tempo, voltámos ao quotidiano cinzento, ao pontapé na bola que tudo faz esquecer, ao ponto de muitos poucos lembrarem que temos um Nobel da Literatura.
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