quinta-feira, 12 de novembro de 2020

SARAMAGUEANDO

Há um pedacinho nas Férias de Agosto de Cesare Pavese em que se lê: «… e era já manhã, um outro dia tranquilo. Recordo o perfume quente, as vozes nas ruas. Sei onde cai a uma certa hora a quadra do sol na tijoleira da sala.»

 Eu, ainda hoje, recordo a intensidade do sol, as vozes no quiosque, em Manteigas, quando olhei a capa do «24 Horas» e li que José Saramago poderia ganhar o Nobel. Comprei o jornal, não que eu acreditasse que alguma vez a Academia Sueca faria a atribuição do Nobel a um escritor de língua portuguesa e muito menos a um escritor português.

 Mas aconteceu.

 Um escritor português ganhou o Nobel, foi o primeiro.

 Terá sido o último?

 Um país então levantou-se em alegria, escreveu na altura Eduardo Prado Coelho:

 «É possível, como se viu nesta semana, que um país se levante em alegria porque alguém ganhou um prémio de literatura.»

 Muitos já terão esquecido essa alegria.

 Esteve bem a Fundação José Saramago, pelos 20 anos da atribuição do Nobel,  em publicar um livro, Um País Levantado em Alegria, da autoria de Ricardo Viel em que se desenha o caminho do que foi esse acontecimento, algo que se perdeu nas páginas dos jornais da época, acrescentando episódios desconhecidos.

 Em cento e setenta páginas viajamos por esse tempo que eu, mais alguns, direi inesquecível, e disso se dará conta por estes dias de triste e terrível confinamento.

 O livro abre com um texto de Eduardo Lourenço a que chamou «A mão esquerda de Deus…»:

 O merecido sucesso de José Saramago coroa um destino de escritor que deve tudo á violência da sua vontade de escalar os céus, sem pressa, dando tempo ao tempo. José saramago pertence a uma linhagem mais rara do que se julga, a dos que escrevem depois de ter vivido. E à mais rara ainda, sobretudo na nossa tradição, de não ceder à natural tentação de se vingar da vida, do mundo, da História, glosando compulsivamente a sua experiência subjectiva e fazendo girar o mundo à sua volta. Isso não o coloca fora de uma mais arcaica tradição nacional: a do alegorismo que é sempre espelho de uma verdade já revelada. No horizonte da sua ficção há essa íntima convicção de uma verdade de rosto exclusivamente humano que lhe servirá para invocar, por contraste, a inumanidade ofuscante que caracteriza o tempo da cegueira que nos coube. E lhe coube. Salvou-o da hagiografia e do dogmatismo um miraculoso dom de ironia e uma quase inexplicável candura ou simplicidade diante da vida, que a vontade e poderio e o cego arbítrio tantas vezes desvirtuam.

De hoje em diante haverá um «mito Saramago» como existe em torno de Fernando Pessoa, que, como todos os mitos, não tem tanto a ver com o valor das respectivas obras, mas com o vazio que vêm preencher no nosso imaginário nacional em busca do reconhecimento universal. Toda a nossa cultura beneficiará dessa aura que poderia ter recaído sobre outros, mas lhe coube e assenta como um diadema invisível ao autor de Todos os Nomes, a mais bela e profunda das suas alegorias.»

2 comentários:

Seve disse...

Que belo texto (e que excelente foto)!
Obrigado Sammy por estas pérolas

Sammy, o paquete disse...

Obrigado pelas palavras.
Nestes momentos tão difíceis que temos de enfrentar, é gratificante ouvir essas palavras.
Ainda hoje sinto o júbilo que senti quando soube da atribuição do Nobel da Literatura a José Saramago.
«Um país levantado em alegria», nas felizes palavras de Eduardo Prado Coelho e, só depois de nos ter deixado, muitos ficaram a saber o quanto tinham sido injustos nas maneiras com que muitas vezes trataram o Eduardo.
Um país em alegria, só que passado pouco tempo, voltámos ao quotidiano cinzento, ao pontapé na bola que tudo faz esquecer, ao ponto de muitos poucos lembrarem que temos um Nobel da Literatura.