Desta Água Beberei
Urbano Tavares
Rodrigues
Capa: Manuel Dias
Livraria Bertrand, Lisboa, Março de 1979
Aqui vive a classe operária, aqui se trava o deslize para a direita,
aqui se escreve hoje o amanhã. Quando o céu fica de chumbo, quando as vértebras
doem e o peito estala de zanga, organiza-se qualquer coisa que nos reúna, um
sorteio, uma patuscada, na areia macia de todos, junto dos grandes eucaliptos,
dos velhos pinheiros redondos da amizade e do amor. Sobejam felizmente os
gravadores, os leitores de cassettes,
os transístores, companheiros constantes dos domingos pobres. E se a caruma do
pinheiro não auxilia, de facto, o baile pulado dos mais novos, sempre se
descobre que ainda existem pássaros, flores ao deus-dará e seios rebeldes a
espartilhos, que a língua aguda do sol torna nacarados. «De quem és tu,
Etelvina?»,- «Minha.» - Quero-te, Etelvina, minha tua, e nunca, ao meu lado,
hás-de envelhecer, porque te hei-de ver sempre como agora te vejo, com olhos de
ternura,»
-Que é isso, João, é do vinho ou do sol?»
A liberdade palpita nos dedos que, livres, se entrelaçam. No crepitar das saúdes, no entusiasmo dos punhos que se cerram, no jovem ondular das saias estampadas, bocas vermelhas como a Revolução. Etelvina, o rosto liso da fraternidade. Contigo estou, estarei, meu amor, minha luta, meu calvário partilhado, meu naufrágio se tiver de o ser, minha porção de dia e noite, meu complemento, sexo sem cadeado, assim eu possa e saiba acompanhar-te não só na euforia, mas na batalha das horas ruins, na difícil resistência à penúria e ao fastio.
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