Uma Coisa Em Forma de Assim
Alexandre O’Neill
Capa: Alexandre
Delgado O’Neill
Editorial
Presença, Lisboa, Abril de 1985
Como pode ser-se idiota e, ao mesmo tempo, feliz,
pergunta-me um leitor?
Pois explico já. A idiotia e a felicidade são ideias
muito vagas, difíceis de cingir em conceitos de circulação universal, digamos.
Mas, pensando melhor, acho que certa idiotia é susceptível de conferir ao
idiota ser proprietário (ou seu prisioneiro) uma espécie de segurança em si
próprio que o levará, em determinados momentos, julgo eu, a uma beatitude muito
próxima do que se pode chamar estado de felicidade.Assim sendo, não vejo
incompatibilidade entre o ser-se idiota e o ser-se feliz. Bem sei que há várias
maneiras de se chegar a idiota. Uma delas foi experimentada comigo. Uma parente
minha queria por força reconverter-me ao Catolicismo e, deste modo, passava a
vida a dizer-me: «Alexandre, não penses. Se começas a pensar estragas tudo. A
crença em Deus, se, em vez de pensares, reaprenderes a rezar, vem por si. É uma
graça, sabias? Vá, reza comigo.» E ensinava-me orações que eu, muitas vezes de
mãos postas, repetia aplicadamente. Acabei por não me casar com ela.
Não quero dizer, com isto, que não acredite na chamada
(creio eu) revelação. Se revelação não existisse, como poderia um poeta do tomo
de Paul Claudel entrar um dia em Notre-Dame e sentir-se, naquele preciso
momento, convertido irresistivelmente ao Cristo e à irradiação da sua verdade e
da sua beleza? E não pode afirmar-se que o grande poeta fosse um idiota.
Agora a minha parente era-o, de certeza, e queria
fazer de mim outro idiota. Não por desejar reconverter-me, mas por
aconselhar-me, como meio, o de eu não pensar, o de eu principalmente não
pensar. Se tivesse casado com ela (que não era filha da minha lavadeira) talvez
tivesse sido feliz - não se sabe - idiota e feliz. Assim, fiquei longos anos
idiota e infeliz, infeliz por ser idiota e saber que o era e que não podia
deixar de o ser. Ora, um idiota que é infeliz por saber que é idiota já pode
estar a caminho de deixar de o ser. É uma possibilidade. É a tal luz no fundo
do túnel, como se disse tantas vezes a propósito da situação económica deste
idiota de país.
Não se espante, por conseguinte, o leitor de que um
qualquer idiota possa, ao mesmo tempo, ser feliz. É, até, assaz corrente. Há
idiotas que se consideram inteligentíssimos, o que é uma forma muito comum de
idiotia, e extraem dessa certeza alguma felicidade, aquela maneira de
felicidade que consiste em uma pessoa se julgar muito superior às que a
rodeiam.
O leitor gostaria de ser ministro ou secretário de
Estado? Pois fique sabendo que há quem goste, embora - será justo dizê-lo -
também há quem o seja a contra-gosto, por dever partidário ou patriótico.
Os idiotas, de modo geral, não fazem um mal por aí
além, mas, se detêm poder e chegam a ser felizes em demasia podem tornar-se
perigosos. É que um idiota, ainda por cima feliz, ainda por cima como poder, é,
quase sempre, um perigo.
Oremos.
Oremos para que o idiota só muito raramente se sinta
feliz. Também, coitado, há-de ter, volta e meia, que sentir-se qualquer coisa.
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