Mário-Henrique Leiria é um lírico recalcado. Se os
deuses o tivessem soprado brandamente para margens de idílicos remansos, ele
tereia jogado ao esconde-esconde com as ninfas de serviço e, até, levado ao
registo e ao colchão a primeira que, apanhando-o, se deixasse apanhar. Isto é o
que acontece, trivialmente, a quem comete a candura de ser lírico. Depois, para
ele, desenrolar-se-ia o trabalhoso novelo do dia-a-dia. E Mário-Henrique leiria
(eu conheço-o!) cumpriria. Até ao dia em que,,,
Mas os deuses teceram outros enredos para ele:
«Queremos o Màrinho para muitas bolandas!» E Mário teve-as, tem-nas tido,
tê-las-á.
Rapidamente compreendeu, como qualquer Baudelaire, que
o sorriso esconde o rictus e a flor dos lábios o dentário aqueduto da caveira.
Destes arquétipos de má literatura extraiu, ao invés do que se poderia supor,
salutar razão de optimismo. Recalcou o lírico que lhe assomava à Lágrima,
venceu a tentação do satanismo de feira e do franciscanismo de congresso e
riu-se das boas (ou más) intenções em literatura.
Salvou-se, assim, do abono de família.
Ninguém sabe como ele é quando está só. DE uma
infância nada cavalgante, imagino eu que ele tira correrias de índios, arcos e
flechas, rasgados gritos guturais. Adormece, na realidade, Rosto Pálido, e
acorda, no sonho, Pele Vermelha.
Já invocou o diabo, à meia-noite, numa encruzilhada,
enquanto tiritava de frio no centro do
círculo mágico e deixava pender o braço ao peso da espada. Já fez manoletinas
de salão. Disparou caçadeiras através do postigo do telhado só para acordar
Carcavelos da sua letargia de terra avivendada.
Se fosse muito rico, dedicar-se-ia às grandes e imperturbáveis
blagues de um Raymond Roussel. Assim, cria o mais imediato «Retrato de Família
com Boné», um retrato tão magro como aquele Chile que não deixaram engordar.
É um amigo que desconfia da amizade. Por instinto. No
fundo, tem medo que o apanhem nas filigranas de uma ternura qualquer.
A sua maldade-por-escrito é apenas a economia de meios
que ele usa na construção da máquina de absurdos que projectou. Como não tem
tempo de dar muita vida às suas fugazes personagens, devorando-lhes as peças
anatómicas. Pretende comer cru o que os outros comem cozido. É um antropófago
que não tem aquela vizinha do lado a quem se costuma pedir panela e sal. E
deixa os restos na praia. Para que o sábio da próxima expedição punitiva se
entretenha a identifica-los.
Escreve literariamente
mal e tira alguma força disso. Mas não deve exagerar.
Entretanto, vai desdobrando o óculo sobre as grandes
solidões oceânicas para ver se descobre o Capitão Morgan a ler, no tombadilho,
o seu último livro.
Era a maior alegria que os deuses lhe podiam dar!
Alexandre O’Neill
em Uma Coisa Em Forma de Assim
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