terça-feira, 15 de março de 2016

ESTUDAR PARA POETA


Fui sempre um péssimo aluno, no leviano julgamento professoral. Nem me esforçava por pompear virtudes inventadas, pois os programas escolares divergiam totalmente dos meus cujo desiderato, embora inconsciente, resumo agora nestas palavras: «estudar para poeta.»
Quanto às provas do fim do ano, sempre as considerei autênticos sacrifícios de humilhação vexada diante de senhores que falavam numa linguagem inquisitorial de que eu só a custo entendia algumas noções absurdas.
Os meus cursos pouco tinham a ver com os das classes que fingia frequentar. Ou apenas coincidiam com uma ou outra disciplina. A do português, por exemplo (gramática à parte).
Em português, desde que me pedissem que despejasse de cor os artigos, as preposições, os tempos dos verbos, etc., podia pelo menos exibir-me nos pontos escritos que (malbaratados tempos esses!) nunca ninguém me ensinou como se planeavam e faziam. Todos me afiançavam que se tratava de ter nascido com jeito ou sem jeito. Redigir não se ensinava. Nem se aprendia. Tudo se resumia a uma questão de jeiteira. Ou se tinha ou não se tinha habilidade. Como o meu caso evidenciava à maravilha.
Do que eu gostava sobretudo era de faltar à escola – frequentar a liberdade, uma das cadeiras básicas do meu curso especial, tomar contacto com a tumultuosa riqueza da cidade nas aulas livres das ruas, dos cafés, dos bilhares, da feira da ladra, das ruelas sórdidas, onde paradoxalmente os miúdos ostentavam a fome através das panças enormes. Tudo isto entremeado com uma ou duas horas de leituras repoltreadas de livros não recomendados pelos professores que, no entanto, me ensinaram uma disciplina fundamental: a do tédio. (Sem essa aprendizagem poderia lá ter aguentado tantos anos de bocejos!).
Em todo o caso sempre reduzi ao mínimo o enfado de ouvir falar de aritmética, por exemplo. Nos anos normalmente incautos da instrução primária, preferia substituí-la pela contagem rumorejante das folhas das amoreiras do caminho da Charca, para calcular quantos bichos-da-seda conseguiria manter na caixa de sapatos oferecida pela família para meu laboratório pessoal, em que gastava horas a ver criar vida e fabricar casinhas de cores redondas com uma espécie de cuspo em fios.

José Gomes Ferreira em Coleccionador de Absurdos

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