Homens E Bichos
Axel Munthe
Tradução e
prefácio de António Sérgio
Editorial
Progresso, Lisboa s/d
Tinha-o contratado por todo o ano. Duas
vezes por semana, vinha tocar-me todo o seu repertório; e, nos últimos tempos,
por simpatia pela minha pessoa, bisava o «Miserere» do Trovatore, a sua peça de resistência. Punha-se
bem no meio da rua. Fixando-me as janelas enquanto tocava; chegado ao fim,
tirava o chapéu e exclamava: «Addio Signor!»
Sabe-se que o realejo, exactamente como
o violino. Adquire com o tempo uma sonoridade mais bela, mais impressiva. Tinha
o velho um instrumento de primeira ordem, não do tipo moderno e barulhento, que
imita as orquestras com as suas flautas, seus metais e seus tambores, mas um
realejo velho e melancólico, que insinuava um devaneio misteriosos no mais
jovial dos allegrettos,
e cujo tempo di marcia mais bélico evocava inconsoláveis resignações.
Nas peças de maior ternura, quando o canto se velava e tremia. Como a voz de um
velho cantor ambulante, e ia tenteando um caminho incerto pelos tubos
enferrujados das notas altas, fazia-se ouvir pelos baixos roucos um trémulo de
soluços abafados. O realejo, lá de quando em quando, emudecia de todo;
resignadamente, o velho manivelava nesses compassos de espera, mais eloquentes
no seu silêncio que a mais comovedora de todas as músicas.
Na verdade, o instrumento cumpria com o
seu dever; mas cabia ao velho uma boa parte naquela tristeza que me dominava,
sempre que ouvia a sua música. Fazia estação nos bairros pobres que se estendem
por detrás do «Jardin des Plantes»; e, muitas vezes, nos meus passeios
solitários, me sucedeu parar diante dêle, tomando lugar no auditório escasso de
garotos esfarrapados que o cercavam.
Sem comentários:
Enviar um comentário