Isto Sucedeu Assim
António Botto
Colecção “A Novela” nº 2005
Editora Argo, Lisboa, Abril de 1940
Doía-me a garganta de tanto fumar.
Cigarros sobre cigarros. Um arrepio de frio fêz---me levantar a gola do meu
velho sobretudo. Houve uma aberta… Saí. Os meus vinte e oito anos e a minha
virilidade de homem que punha no amor todo o lume de uma vida que sente a
sensualidade, eram, agora, um desalento à mercê de qualquer coisa…
Uma guitarra tocava. Fui ao encontro do
som. Entrei. Café de operários. Ao fundo, um tipo de «chauffeur». Arrancava da
guitarra lentas revoltas de fado. Sentei-me; pedi um copo de vinho.
A guitarra dominava. Chorosa, quási em
surdina, ia atrás do cantador; e a cantiga tinha cunho, certo recorte fatal em
versos de amargo travo:
A mulher que vai ao clube
Passa por ser desonesta
Até lhe chamam perdida;
Só se vê nela o desejo
Decadente de viver
O fundo inútil da vida.
Ninguém procura ver nela
Mais que a mentira de um beijo
À margem de outra mentira;
Um cigarro que se fuma,
Ou palavra que se perde
Na voz de alguém que delira...
Se os olhos enche de pranto,
E com ele os olhos lava
- Reflexo de uma agonia, -
Quantos não dizem: - Fiteira,
Quer comprar alguma jóia
E o ourives não lha fia.
E a mulher por mais rameira
Não tem somente por norte
Atraiçoar ou mentir:
Nela, há tesoiros de amor
Que valem mais que a fortuna
Maior que possa existir!
Porque nós é que a levamos
Ao pecado que deprime
E ao bordel da perdição;
Triste odisseia da carne
Que se canta e se amortalha
Nos versos de uma canção!
Mas, como a verdade é uma,
Embora digam que há muitas,
E cada qual tem a sua,
Na mulher não queiram vê-la
Simplesmente quando beija
E apenas quando está nua.
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