Gaibéus
Alves Redol
Colecção Livros de Bolso Europa-América nº 11
Colecção Livros de Bolso Europa-América nº 11
Publicações
Europa-América, Lisboa Julho de 1971
Pareciam cercados no trabalho pelo
braseiro de um fogo que alastrasse na Lezíria Grande. Como se da Ponta de Erva
ao Vau a leiva se consumisse nas labaredas de um incêndio que irrompesse ao
mesmo tempo por toda a parte. O ar escaldava; lambia-lhes de febre os rostos
corridos pelo suor e vincados por esgares que o esforço da ceifa provocava. O
Sol desaparecera há muito, envolvido pela massa cinzenta das nuvens cerradas.
Os ceifeiros não o sentiam penetrar-lhes a carne abalada pela fadiga. Lento,
mas persistente, parecia ter-se dissolvido no ar que respiravam, pastoso e
espesso. Trabalhavam à porta de uma fornalha que lhes alimentava os pulmões com
metal em fusão. Quase exaustos, os peitos arfavam num ritmo de máquinas velhas
saturadas de movimento. A ceifa, porém, não parava, e ainda bem – a ceifa
levava o seu tempo marcado. Se chovesse, o patrão apanharia um boléu de
aleijar, diziam os rabezanos na sua linguagem taurina. Eles próprios não a
desejavam; se as foices não cortassem arroz, as jornas acabariam também. E se
ao sábado o apontador não enchesse a folha, as fateiras não trariam pão e
conduto da vila. Então os dias tornar-se-iam ainda mais penosos e o degredo por
terras estranhas mais insuportável. Vencidos pelo torpor os braços não param.
Lançam as foices no eito, juntando os pés de arroz na mão esquerda, e o hábito
arrasta-os em gestos quase automáticos, mais um passo e outro, a caminho da
maracha que fecha o extremo de cada canteiro. Caminham sempre no mesmo balouçar
de ombros; as pegadas do seu esforço ficam marcadas na resteva lodosa. Talvez
muitos deles pensem que o arroz deitado nas gavelas repousa primeiro do que os
seus corpos. Se pudessem deter-se também, por instantes, e descansarem depois a
cabeça nos montes de espigas que deixam atrás de si, a ceifa poderia animar.
Mas o bafo que vem da seara queima mais em cada minuto e as cabeças dos
alugados pesam já tanto como o cabo das foices nos braços esgotados. Estão
atulhados de amarelo, de pensamentos e de grãos de fogo que a canícula doente
lhes insuflou no sangue. Ninguém entoa cantigas para animar, embora os
capatazes tenham incitado as raparigas cantaroleiras para o fazer. Nos ranchos
não há agora quem saiba cantar. Como podem as cachopas entrar em cantos ao
desafio, se os peitos parecem fendidos pela fadiga e o ar que respiram se
tornou lava do vulcão da planície?!
-Auga!… Auga!… – Gritam os rapazes
aguadeiros.
Os seus brados parecem vogar sobre o
rancho e não se dissolvem. Ficam a boiar na massa espessa da lava de fogo e
angústia que cobre as searas. As palavras não naufragam. Os seus brados parecem
vogar sobre o rancho e não se dissolvem. Ficam a boiar na massa espessa da lava
de fogo e angústia que cobre as searas. As palavras não naufragam. Talvez por
isso também as raparigas não cantem. Agora só saberiam canções tristes que lhes
recordassem a sua condição de alugadas.
- Auga!... Auga!...
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