quarta-feira, 5 de julho de 2023

O OUTRO LADO DAS CAPAS


 Um mês, e mais alguns dias, que vamos percorrendo sem a Eduarda Dionísio.

Se já pouco lhe ligavam em vida, após a partida, apenas sombras e silêncios.

Fui à estante e percorri páginas e mais páginas de Retrato de Um Amigo Enquanto Falo.

 Aqueles extraordinários anos 60. Depois o início dos anos 70.

Os «revisas», os «troskas», os «maos».  No meio de tudo isto um ele que (ainda) conseguia unir – o ódio de morte à ditadura fascista. Depois foi o golpe do Pinochet no Chile. A grande discussão. Uns copos bebidos no tasco do costume Foi quando o Pedro quis escrever um artigo contra Salvador Allende. E alguns de nós a pensar que a censura até o deixaria passar. Sabendo-se que a censura cortaria tudo o que referisse o governo de Unidade popular. A mais leve evocação que fosse. Foi terrível. Foi também a divisão. E ainda não chegara o 25 de Abril. E agora nem sequer nos encontramos no tal tasco para um copo. Os sobressaltos dos  anos 60/70. O desespero. A esperança. O tempo das opções. As hesitações. As grandes e inultrapassáveis hesitações. Os livros do Marx, do Lénine , da Rosa Luxemburgo, do Mao, lidos à sucapa. Passados de mão em mão. Traduções péssimas mas as únicas que tínhamos. E sabemos com que riscos.

Portugal anos 60 e 70: o 25 de Abril. Um itinerário. Ou seja: o livro da Eduarda Dionísio, Retrato de Um Amigo Enquanto Falo. Um livro lindo que apetece ter sempre no bolso do casaco. A tal malta dos anos 60/70 está ali toda, está lá (quase) tudo. Um som e um ambiente ainda a pssar pelas veias. Levámos pontapés. Tivemos alegrias. Resistimos. Optámos. Aprendemos. Aprendemos mesmo? Um tempo vivido em bruto sem tratamentos de ácidos e cloros. Também uma certa ternura. Este livro não é uma romagem de saudade. Saudades só do futuro.

Eduardo Lourenço:

«Desta geração, em sentido literário, mais que vital, poucas expressões me parecem tão significativas como a que ficou consagrada em Retrato de Um Amigo Enquanto Espero, de Eduarda Dionísio.»

 Jorge Listopad:

«Li o livro, nas primeiras páginas, devagar. Como se lê em línguas abstractas, mal aprendidas. À medida que se avança, o discurso – e a leitura – acelera-se, precipita-se, ritmando em filigrana rostos, cenários, brincando por entre as arcadas como Maria Casarés, a bela morte, no «Orfeu» de Cocteau. Histórias da vida encobertas. Um diário que esconde a matéria-prima, mas revelando-a. Itinerário. Eu sou apenas um leitor. As críticas que fiquem para os outros. Há outros? Haverá?»

Para os «encartados» como dizia o Eduardo Guerra Carneiro.

 Fui buscar memórias de antes de Abril, mas este livro da Eduarda é um documento desencantado sobre o tempo que sucedeu ao que foi a Festa do 25 de Abril, que nos estragaram, que estragámos.

Um livro que não poderá deixar de ser lido, um livro que muito releio. Um livro que me sabe às manhãs da amizade, gentes que, por isto e por aquilo, deixei de ver, que gostaria de reencontrar para apanhar pontas de um novelo, um estranho novelo, diga-se.

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