Por vontade própria, o meu pai reformou-se tarde.Já tinha, há algum tempo, passado os 65 anos, quando colocou um ponto final na
carreira de jornalista-gráfico, como gostava de se considerar.
Passámos, então, a ter um tempo que até aí não existira e,
pelo menos, uma vez por mês, arrancávamos para uma jantarada, mais regada do
que o resto, que terminava sempre com conversas “non-sense”, que iam desde o
marxismo-leninismo ao carrapito da D. Aurora, do Benfica às pernas da Cyd
Charisse.
Por vezes a jantarada era antecedida de sessão de cinema.
Juntos, vimos, no Fórum Picoas. as Recordações
da Casa Amarela do João César Monteiro, - e o que nos divertimos! -,
juntos também, (não) vimos no Londres a adaptação
cinematográfica da Insustentável Leveza do Ser. Ao fim de
vinte minutos de filme, olhou para mim e disse: vamos embora!.
Apanhámos um táxi para Alcântara e aterrámos no Cuidado
Com o Degrau, um restaurante que, penso, já não existe.
Marxista-leninista convicto, gostava particularmente de
Sartre e, e lia-o em francês. O livreiro Carvalho, da Livraria Clássica
Editora, nos Restauradores, ao lado do então Cinema Eden, , conseguiu
arranjar-lhe os seis primeiros volumes de Situations e
sempre disse:
Mais vale estar errado com Sartre do que ter razão com
Aron.
Não admira as cócegas que sentiu vendo o filme saído do livro
do Milan Kundera.
Pelo meu lado li Sartre, As Palavras é um
livro que marcou muito os meus passos, mas sempre fui mais Albert Camus.
Há dias, ao rever Peggy Sue Casou-se, um
filme mal-amado, ou melhor dito: pouco citado, de Francis Ford Coppola,
dono e criador de obras inescapáveis, topei com o diálogo de uma maravilhosa
Kathleen Turner com o avô:
- Avô!
Sabe, quando o senhor e a avó morrerem a família morre
convosco. Não voltarei a ver os primos.
- O “strudel “da tua avó é que mantém esta gente unida.
- Se pudesse voltar a fazer tudo de novo, avô, que faria
de modo diferente?
- Trataria melhor dos meus dentes
Este tratar melhor dos dentes, mandou-me
para idênticas palavras do meu pai (estaria a citar Coppola? Não
sei!), numa das jantaradas, quando a conversa terá entrado
pelo velho beco do se eu soubesse o que sei hoje, se voltasse atrás,
blá,blá,blá, e ele muito peremptório a afirmar que faria tudo, mas mesmo tudo,
o que fizera, com uma única excepção:
«Trataria melhor dos meus dentes.»
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