«O ministro José Luís Carneiro declarou,
placidamente, como se fosse a coisa mais normal deste mundo, ter telefonado
diretamente ao presidente do conselho de administração da RTP, a televisão
pública, para "manifestar desagrado" (cito as palavras usadas pelo
próprio) com um cartoon animado que caricaturava o suposto racismo da polícia
francesa, na sequência dos acontecimentos que geraram vários dias de motins,
mas cujo desenho foi entendido por alguns como sendo também uma acusação à
polícia portuguesa.
O ministro José Luís Carneiro, que tutela as
polícias, talvez tenha sentido que essa era a sua obrigação, que tinha de
defender a imagem dos polícias portugueses, mas para o fazer usou algo que
liquida a sua própria credibilidade democrática - abusou da autoridade que o
cargo de ministro da Administração Interna lhe confere.
É verdade que os Estatutos da RTP dão aos
diretores de Informação toda a autonomia e responsabilidade editorial do
jornalismo da RTP, sendo teoricamente imunes a interferências do próprio
conselho de administração, quanto mais do governo.
Na programação, a força formal dessa
blindagem não existe. Porém, para além do próprio conselho de administração, há
estatutariamente vários órgãos que lateralmente podem verificar se a RTP está a
cumprir na programação os requisitos do serviço público que presta, como o
conselho geral independente e o conselho de opinião.
A ERC e a própria Assembleia da República
também podem pronunciar-se, dentro dos limites da regulamentação existente,
sobre o que anda a televisão pública a fazer.
Há ainda provedores de espectadores,
instituídos pela própria estação, que fazem análise crítica ao conteúdo das
emissões.
Nada na comunicação social portuguesa é tão
escrutinado como o conteúdo da RTP, televisão e rádio, Isso acontece todos os
dias, e ainda bem que é assim.
Mas ninguém do governo, enquanto tal, tem
enquadramento legal para fazer o que José Luís Carneiro disse que fez. Nem,
sequer, o ministro da tutela - e esta distância entre a televisão pública e o
executivo foi algo duramente construído ao longo de quase cinco décadas de
democracia, e que afasta a RTP dos tempos em que ministros telefonavam a
diretores de Informação para discutir o alinhamento do Telejornal.
Esse progresso, que aparentava ser
consensual, está, pelos vistos, em risco de regressão.
A simples sensibilidade política é também
diferente se for um membro do governo a refilar contra a RTP ou se for um
partido da oposição a protestar por uma qualquer notícia que lhe desagrade.
Os partidos, isoladamente, não têm poder
efetivo sobre a RTP e, por isso, as suas reclamações são um direito de
intervenção pública que não lhes pode ser negado.
Poderá ser eventualmente aceitável que um
membro do governo faça críticas ou elogios públicos a qualquer conteúdo da RTP,
mas, na realidade informal, o peso do poder de um ministro implica que neste
caso seja mais ténue a linha que separa a manifestação de uma posição política
legítima da de uma interferência abusiva.
José Luís Carneiro ultrapassou claramente
essa linha ao telefonar diretamente ao presidente do conselho de administração,
Nicolau Santos, pois esse contacto pode legitimamente ser interpretado como uma
tentativa de coação política direta, um afrontamento personalizado de alguém,
que está no poder executivo do país, sobre alguém que executa um contrato de
serviço público. Nessa conversa, implicitamente, apesar de todas as defesas
legais, está subentendido quem manda mais, quem está por cima, quem está por
baixo e quem pode começar a trabalhar para fazer a vida negra ao outro. É,
repito, um abuso de poder.
Mas, pior do que isto tudo, é o ridículo.
Meu Deus! Estamos a falar de um cartoon, que uns gostarão e outros não, mas é
um cartoon, não é para levar a sério, não é para gastar tempo político e nos
tribunais.
Quantos destes ofendidos não se disseram um
dia, em 2015, emocionados, solidários com os cartoonistas assassinados do
Charlie Hebdo e usaram, desafiadores à distante ameaça islâmica, o autocolante
"Eu sou Charlie"?...
Que patetas!
Pedro de
Tadeu no Diário de Notícias de hoje.
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