Esse rapaz historiador, ou biografante, que dá pelo
nome de Joaquim Vieira, no seu José
Saramago: Rota de Vida, tem um capítulo, que intitulou O Pinga Amor, onde dá conta das mulheres da vida de José Saramago,
capítulo erigido para deleite de balzaquianas e afins.
Terá esquecido Domitília. E, no entanto, Saramago fala da moça em As Pequenas Memórias:
«Quanto à Domitília, fomos apanhados, um dia, ela e eu, metidos na mesma cama, a brincar ao que brincam os noivos, activos, curiosos de tudo quanto no corpo existe para ser tocado, penetrado e remexido. Pergunto-me que idade teria nessa altura e creio que andaria pelos onze anos ou talvez um pouco menos (na verdade, é-me impossível precisar, pois morámos por duas vezes na Rua Carrilho Videira, na mesma casa). Os atrevidos (vá lá a saber-se qual de nós teve a ideia, ainda que o mais certo é que a iniciativa tenha partido de mim) apanharam umas palmadas no rabo, creio recordar que bastante pró-forma, sem demasia da força. Não duvido de que as três mulheres da casa, incluindo a minha mãe, se tivessem rido depois umas com as outras, às escondidas dos precoces pecadores que não tinham podido aguentar a longa espera do tempo próprio para tão íntimos descobrimentos. Lembro-me de estar na varanda das traseiras (um quinto andar altíssimo), de cócoras, com a cara metida entre os ferros, a chorar, enquanto a Domitília, na outra ponta, me acompanhava nas lágrimas. Mas não nos ficou de emenda. Uns anos depois, já eu morava no número 11 da Rua Padre Sena Freitas, ela foi visitar a tia Conceição, e o caso é que não havia ali tia nem tio, nem meus pais estavam em casa, graças ao que tivemos tempo de sobra para acercamentos e investigações que, embora não chegando a vias de facto, deixaram inapagáveis lembranças a um e a outro, ou pelo menos a mim, que ainda daqui a estou a ver, nua da cintura para baixo. Mais tarde, moravam já os dois Baratas na Praça do Chile, eu ia visitá-los com a mira posta na Domitília, mas, como então já éramos crescidos e estávamos habilitados para tudo, difícil mente podíamos ter um momento só para nós. Foi também na Rua Padre Sena Freitas que dormi (ou não dormi) parte de uma noite com uma prima (tinha o nome da minha mãe, Maria da Piedade, que além de ser sua tia, era também sua madrinha), um pouco mais velha que eu, deitados na mesma cama, ela da cabeceira para os pés, eu dos pés para a cabeceira. Precaução inútil das ingénuas mães. Enquanto elas retomavam na cozinha a conversa que não devíamos ouvir e que haviam interrompido para nos levarem à cama, onde com suas próprias e carinhosas mãos nos taparam e aconchegaram, nós, depois de alguns minutos de ansiosa espera, com o coração aos saltos, debaixo do lençol e da manta, às escuras, demos começo a uma minuciosa e mútua exploração táctil dos nossos corpos, com precipitação e ansiedade mais do que justificadas, mas também de uma maneira que foi não somente metódica mas também o mais instrutiva que estava ao nosso alcance chegar do ponto de vista anatómico. Recordo que o primeiro movimento da minha parte, a primeira abordagem, por assim dizer, levou o meu pé direito a tactear o púbis já florido da Piedade. Fingíamos dormir como dois anjos quando, ia adiantada a noite, a tia Maria Mogas, que estava casada com um irmão de meu pai chamado Francisco, a foi buscar à cama para regressarem a casa. Aqueles, sim, eram tempos de inocência.»
José Saramago em As Pequenas Memórias, página 42
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