terça-feira, 31 de dezembro de 2024

POSTAIS SEM SELO


José Saramago marcando, em Lanzarote, o final do ano de 1994.

«Escrevo entre as 12 da noite e as 12 da noite. A Península já entrou em 1995, aqui ainda nos restam vinte minutos de 1994 para viver. A noite de Lanzarote é cálida, tranquila, Ninguém mais no mundo quer esta paz?»

José Saramago, em Cadernos de Lanzarote, Vol. II

ADÍLIA LOPES 1960-2024)


 Aos 64 anos, morreu a poetisa Adília Lopes.

OLHARES


 O governo de direita-ultra-liberal de Luís Montenegro, nos poucos meses em que vem actuando, tem-nos dado atitudes e imagens verdadeiramente lamentáveis.

A exibição policial na Rua do Benformoso terá sido a mais execrável.

«A noção de necropolítica foi introduzida por Achille Mbembe​ para designar as operações cirúrgicas praticadas sem anestesia no corpo das populações, em que as intervenções, comportando uma boa dose de violência efectiva e, ainda mais, de violência simbólica, são sempre político-cirúrgicas. A necropolítica usa a necropolícia para realizar a cirurgia política.
Tem “necro” no nome porque governa a partir da produção da morte, física ou social, e está ancorada no estabelecimento de uma hierarquia dos vivos. O conceito de necropolítica engloba, portanto, o direito de impor a morte social ou civil, a submissão incondicional e diversas formas de violência política. Uma imensa fila de corpos encostados à parede pela necropolícia, numa rua de um bairro da cidade habitado maioritariamente por migrantes, serve para mostrar corpos que perderam todo o seu poder, socialmente mortos. É isto a política do medo, longamente testada noutras ocasiões históricas.»

António Guerreiro no Público de 27 de Dezembro

«Fugindo à gritaria, o que mesmo importa é a pergunta que nos deixou Pacheco Pereira: “se fosse eu a caminhar pela rua, teria sido encostado à parede e revistado?”

E a isso, claro, não respondeu o primeiro-ministro. Fazendo prova de uma lógica rebuscada – talvez Marcelo Rebelo de Sousa lhe chamasse lógica urbano-ó-rural, numa palavra, rústica – veio Luís Montenegro afirmar, justificando o aparato: "Muitas vezes não é preciso que haja muitos crimes para que as pessoas se sintam inseguras".


Tem toda a razão. Entre realidade e percepção da realidade existem muitas diferenças. O que me encanitou na frase foi a conclusão a que ela obriga. Considerados os resultados práticos da operação – escassíssimos, to say the least – terá redundado do espectáculo do alinhamento a convicção de que, afinal, há mesmo poucos crimes na zona e podemos todos sentirmo-nos seguros? Os mais velhos, chegando a acrescentar: “Ó Ernestina, vamo-nos embora qu’ isto foi tudo uma grande aldrabice!”?»


Ana Cristina Leonardo no Público de 27 de Dezembro

MÚSICA PELA MANHÃ


Este salto sem rede, no vazio incógnito de um novo ano.

Chamem-lhe futuro.

Sophia Mello Breyner Andresen sempre se admirou por as pessoas celebrarem a passagem do ano, dizia ela que o ano está sempre a passar.

Há quem nunca deseje bom ano a ninguém, dizem que dá azar.

E há a velha sabedoria que nos diz que os anos só são novos enquanto os novos somos nós.

Se viram um amável filme da norte-americana Nora Ephron, com Meg Ryan e Billy Cristal, «When Harry Meet Sally», que, parvamente, em português se chamou, Um Amor Inevitável, o tal filme em que a Meg Ryan simula um orgasmo em pleno snack e, finda a performance, a cliente da mesa ao lado, que esperava para fazer o seu pedido, volta-se para o empregado e diz: «quero o mesmo que aquela senhora», e certamente lembrar-se-ão que quase no final do filme, quando, numa festa de fim de ano, Harry reencontra Sally, começam a ouvir-se os acordes de Auld Lang Syne, e Henry diz que nunca entendeu o significado da canção pois diz que os velhos conhecidos devem ser esquecidos ou que se os esquecemos devemos recordá-los mas como recordar se já os esquecemos? Sally não tem resposta mas, sorrindo, acaba por lhe dizer: “seja o que for é uma canção sobre velhas amizades”.

Chegamos a bom porto: velhas amizades, lembrar os que já não estão connosco, com os que estão, os que ainda fazem do Tempo de Natal a festa dos amigos, celebrar a amizade, sempre, enquanto não chega a hora do adeus.

É isso!

E sabendo que o meu cachimbo está apagado, o meu copo vazio, ouvir aquela canção celta:

«Que a estrada se abra à tua frente,
Que o vento sopre levemente nas tuas costas,
Que o sol brilhe morno e suave na tua face,
Que a chuva caia de mansinho nos teus campos.

Ou aqueles versos de um poema do Jorge de Sena:

 «Já tudo escureceu;

contudo ainda resta algum dia
suspenso de onde veio a noite que chegou primeiro.

É de sempre este resto de dia
e acompanha-a pelo céu em busca das estrelas frágeis.

A noite, uma vez,
compreenderá que ele vem do mesmo lado que ela.» 


A VIDA É UM COLAR

«A missanga, todos a veem. Ninguém nota o fio que, em colar vistoso, vai compondo as missangas. Também assim é a voz do poeta: um fio de silêncio costurando o tempo." "A vida é um colar. Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas as missangas.»

Mia Couto em O Fio das Missangas

Colaboração de Aida Santos

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

OLHAR AS CAPAS

As Paredes na Revolução

Capa: Luís Filipe da Conceição

Colecção: 25 de Abril, Os Dias da Revolução nº 2

Edição Fac-simile Editora Mil Dias/Jornal Público, Lisboa, Dezembro de 2024

«A relevância do muralismo político no pós-25 de Abril é inquestionável.

Os muros – e paredes – do país tornaram-se verdadeiras telas, tanto para partidos políticos, como para artistas e até cidadãos comuns, que, depois de várias décadas de repressão, procuravam, através do desenho e do graffiti, exaltar a liberdade e partilhar mensagens de luta e crítica social.

Publicado em 1978, As Paredes da Revolução é, segundo o seu texto introdutório, “apenas e só, uma tentativa, que outros deverão prosseguir, de arquivar alguns dos milhões de graffiti que cobriram Portugal nesses meses revolucionários”. O livro constitui, assim, uma compilação despretensiosa de numerosos

murais sem qualquer tipo de análise ou estética, um “primeiro testemunho da inventiva de um povo em liberdade”.»





MÚSICA PELA MANHÃ

CHRISTMAS WITH MAHALIA JACKSON
MCPS DGR80041

Silent Night – Hark! The Herald Angels Sing – He’s My Light – I Believe – It’s Real – A City Called Heaven – A Child Of The King – God Space To Me – Walk With Me – Go Tell It On The Mountain – In The Upper Room – Come To Jesus – Jesus Is With Me- It’s No Secret – Amazing Grace


Tem muito pouco a dizer sobre este disco, aliás não tem nada a dizer.
Qualquer coisa que tentasse dizer, não adiantaria nada sobre a beleza que o rodeia, o esplendor de quem o canta.
Apetece-lhe apenas contar que Jacinta, uma novel e interessante cantora de jazz portuguesa, disse, numa entrevista, que entrou para o mundo do jazz, porque na adolescência ouviu um disco de Natal da Mahalia Jackson.

LUA CHEIA DE DEZEMBRO

Tenho fases, como a lua.
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vêm
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua)

No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...

Cecília Meireles

domingo, 29 de dezembro de 2024

À CONVERSA

- Escreve à mão ou à máquina?

- À mão. Aos 93 anos, continuo a ter uma caligrafia que, como grafólogo, considero a de uma pessoa de 50. Tenho uma caligrafia muito firme, muito direita: não arranhada pelos nervos ou pelas trepidações dos fenómenos vasculares. É, até certo ponto, artística, à maneira da caligrafia inglesa.

Entrevista de Juan Filloy a Mempo Giardinelli, copiado de Bicho Ruim

OLHAR AS CAPAS

Horas Perdidas

Urbano Tavares Rodrigues

Prefácio. Miguel Tavares Rodrigues

Capa: Henrique Ruivo

Livraria Bertrand, Lisboa, Agosto de 1973

Olhei para o relógio: onze horas. O dia todo, ali, a ler aos bocados, a pensar. E sempre assim. Nunca acontecia nada. Que vontade de ir para longe, começar uma vida nova, dizer não à doença, embebedar-me de vida, esquecer-me de mim! A maior doença afinal era aquela força da inércia tentacular que ali me retinha afundado no sofá, sem energia para me levantar, abrir a porta…

MÚSICA PELA MANHÃ



Bob Claypool, crítico musical: «Se existe no mundo uma música mais bela do que a dos Chieftains, então eu nunca a ouvi.»





sábado, 28 de dezembro de 2024

POSTAIS SEM SELO

Jorge Luís Borges disse um dia que, ao fim de tantos anos, ao fim de demasiados anos, chegara à conclusão que só devemos escrever sobre aquilo de que gostamos.

Autor desconhecido

BOLO-REI


Naquele tempo apenas havia Bolo-Rei.

Depois inventaram o Bolo Raínha, o Bolo Rei escangalhado, não sabe mais o quê.

Já antes, a ASAE mandou proibir o brinde e fava no Bolo-Rei.

Dizem que o melhor Bolo-Rei é o Confeitaria Nacional, casa fundada em 1829, ali à Praça da Figueira. O segredo da feitura do bolo nunca saiu portas fora. Uma tarde, por um findar de ano, esteve hora e meia, na fila, à espera de comprar o bolo. Não por ele mas por um amigo, chegado de Montalegre, que daquele bolo ouvira falar e nunca tinha comido.


Para ele não há problema. Gosta tanto que os come de qualquer lugar: do Continente, do Minipreço até da padaria aqui da rua. 

Gosta de Bolo-Rei, mas se o querem ver mesmo feliz é quando o encontra fora da época. Que querem? Sempre foi assim e está velho para mudar. Também se perde por broas castelar…

Mas pode dizer que sim, que é bom o Bolo-Rei da Confeitaria Nacional, só que é uma opinião em que não podem ter qualquer tipo de confiança. Está à vista o porquê.

Por ele, em certo Natal uma amiga esteve uma hora na fila para comprar o Bolo-Rei da "Garret", ali para os estoris, Bolo-Rei "chique, chiquérrimo", como a amiga dizia. Sim, um bom Bolo-Rei. Tanta generosidade merecia uma pequenina mentira e disse-lhe: 

"O melhor Bolo-Rei que comi até hoje!"

O sorriso valeu a mentira, o entusiasmo também:

 “Vês! Eu não te dizia!..

espero que me calhe aquela fava
que é costume meter no bolo-rei:
quer dizer que o comi, que o partilhei
no natal com quem mais o partilhava


- de um poema de Vasco da Graça Moura

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

OLHAR AS CAPAS


Dia

Michael Cunningham

Tradução Sara Veiga

Capa: Susana Vilar

Gradiva, Lisboa, Abril de 2024

Vamos ver se ainda sei escrever. Vamos ver se a tinta desta caneta não acaba, é a única caneta que tenho.

Esqueci-me de meter uma caneta na mala, nunca pensei em escrever, em vez de enviar mensagens, até chegarmos aqui. 

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

MÚSICA PELA MANHÃ


O Natal não tem apenas o seu lado brilhante.

Há um pedaço de rua onde reinam as sombras e a solidão.

Há uma frase de Maria Judite de Carvalho: «Todos estamos sozinhos, Mariana. Sozinhos e muita gente à nossa volta, tanta gente Mariana,e ninguém vai fazer nada por nós.»
Está sempre a ouvir que as pessoas se habituam a tudo, só não se habituam à solidão. Aquela canção de Brel, deixa-me ser a sombra da tua sombra, a sombra da tua mão, a sombra do teu cão, mas não me deixes.
Dizia-lhe que antigamente chorava, agora chora pouco e, por isso, a solidão tornava-se mais incompleta. Arrastava-se tentando administrar a sua solidão. São muitos e não imaginamos quantos.

A solidão não pára de crescer.

A remexer no baú de Natal deparou com o envelope contendo notícias de jornais. Notícias de desesperos, notícias de suicídios. Hesitou, não sabe bem porquê, em tocar no assunto. Por fim, resolveu-se. Porque o Natal não tem apenas o seu lado brilhante.

O recorte é do Diário de Lisboa de 27 de Dezembro de 1976 e a notícia é proveniente do Porto:

«António Manuel, de 14 anos, no dia de Natal, lançou-se de uma janela do Coliseu do Porto, tendo sido conduzido ao Hospital de Santo António sem fala e com várias fracturas.
O jovem, que é natural do lugar de Idanha, encontra-se numa fase de recuperação, tendo começado já a articular algumas palavras»

O jornalista fechava assim a notícia:
«De acordo com estatísticas mundiais, a quadra do Natal regista sempre uma subida de tentativas de suicídio, que alguns psicólogos identificam com uma maior acuidade em relação à solidão em dias que a maioria das pessoas se reúne para confraternizar.»


quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

NATAIS SUPORTÁVEIS


 Uma caminhada lenta em busca de Natais suportáveis.

Guerras em todas as partes do mundo, a saúde, que deveria ser a melhor parte das nossas vidas, aparecendo em todas as aldeias do nosso corpo. De qualquer modo, ainda assim – que sacrifício! – pensa que o Natal é uma boa parte do ano. 

MÚSICA PELA MANHÃ

Uma enorme canção de Natal


terça-feira, 24 de dezembro de 2024

LADAÍNHA DOS PRÓXIMOS NATAIS

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito

David Mourão-Ferreira em Obra Poética


CONVERSANDO

Talvez, talvez seja o último Natal.

Se assim for. Que seja um esplendor.

MÚSICA PELA MANHÃ


 Postal de Natal De Uma Puta Em Minneapolis


Olá Charley, estou grávida
E a viver na rua 9
Mesmo por cima de uma livraria nojenta
À beira da Euclid Avenue
Deixei de meter droga
E parei de beber Whisky
O meu homem toca trombone
E trabalha no caminho de ferro

Ele diz que gosta de mim
Ainda que o bebé não seja dele
Diz que o vai criar como a um verdadeiro filho
Ofereceu-me um anel que a mãe costumava usar
E sai comigo para dançar
Todos os sábados à noite.

E Charley, penso sempre em ti
Todas as vezes que passo numa bomba de gasolina
Por causa da brilhantina que usavas no cabelo
E ainda tenho aquele disco de Little Antony e os Imperials
Mas roubaram-me o gira-discos
O que é que se há-de fazer?...

Olha Charley, quase dei em doida
Quando o Mário foi de cana
Por isso voltei para Omaha
Para viver com os meus velhos
Mas toda a gente que eu conhecia
Ou morreu ou estava presa
Então voltei para Minneapolis
E desta vez penso que vou ficar por cá

Sabes Charley, pela primeira vez desde o acidente
Parece-me que sou feliz
Só queria ter agora todo o dinheiro
Que costumávamos gastar em droga
Comprava um parque de carros usados
E não vendia nenhum
Para usar um diferente em cada dia
A condizer com a maneira como me sentisse

Oh Charley, por amor de Deus,

Queres saber toda a verdade?
Não tenho nenhum marido
Ele não toca trombone
E preciso de dinheiro emprestado
Para pagar ao advogado
E, olha, Charley, devo sair com pena suspensa
No dia de S. Valentim.

A canção de Tom Waits faz parte do lado A de Blue Valentine.
A imagem é um pormenor da contra capa do LP.


HISTÓRIA ANTIGA


Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.

Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.


Miguel Torga

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

O OUTRO LADO DAS CAPAS


O correio do Natal de 1997, trouxe-lhe um livro que trazia dedicatória: “Mais uma vez o Alentejo. Já que o gosto é a síntese de todos os sentidos.” 

Ao folhear o livro, lembra-se de ter dito de si para si: também o gosto de partilhar solidões…

“Aromas e Sabores”, foi um trabalho coordenado por Nádia Torres e que contou, para o texto e ilustrações, com a participação de alunos, professores e trabalhadores da Escola C+S de Mértola. Mais não é que um passeio sobre as comidas de Mértola. Aqui apraz-lhe citar Alexandre Pinheiro Torres: “Porque o Alentejo é o único sítio de Portugal onde se sabe tudo o que importa saber.”

Profusamente ilustrado, “Aromas e Sabores” prova, se necessário fosse, que a comida alentejana não é feita apenas de pão e coentros.

Na apresentação do livro Manuela Barros Ferreira escreve:

“Palavras não matam fome, nem que digam mil comidas. No entanto, as palavras são, para os poetas, pão do espírito, sementes lançadas ao vento, fermentos de mudança. Podem ser doces como mel, amargas como fel, picantes como pimenta. A comida exposta em palavras não é, certamente, um livro de poemas. Não há qualquer prazer espiritual na leitura de um livro de receitas. No entanto, para além dos prazeres adiados (e muito concretos) que encerra, pode conter, como este, tudo aquilo que permite a sobrevivência de uma população ao longo de anos e ao longo do ano.”

Tempo de Natal, este que atravessamos, no Olhar as Capas ocorreu-lhe reproduzir uma receita de filhós. Em devido tempo experimentou a receita e achou delicioso aquele toque da aguardente, coisa que a avó não punha nas filhós que fazia e que, apesar de, não deixavam de ser deliciosas.

OLHAR AS CAPAS


Aromas e Sabores

Comidas de Mértola

Nádia Torres

Alunos, professores e funcionários da Escola Comercial de Mértola

Capa: Ruben Ribeiro

Edição: Câmara Municipal de Mértola, Mértola s/d

FILHÓS


3 ovos
2 colheres de açúcar de sopa de banha
50 grs. De açúcar
3 laranjas
0,5 dl de aguardente
1 limão
Canela
Farinha
Óleo
Misturam-se os ovos inteiros, o sumo das laranjas, a banha, o açúcar, a raspa da casca do limão e uma pitada de canela. Depois de todos os ingredientes bem incorporados, junta-se farinha em quantidade suficiente para poder tender, sovando bem a massa. Deixa-se descansar algumas horas e estende-se a massa com o rolo, sobra a pedra polvilhada com farinha. Corta-se com o feitio desejado e frita-se em óleo bem quente.

domingo, 22 de dezembro de 2024

POSTAIS SEM SELO


Havemos de nos ver, quem sabe à tarde, quem sabe de manhã. Só sei que não há duas sem três. E uma vez que assim é, havemos de nos ver outra vez.

Teresa Muge

O OUTRO LADO DAS CAPAS


Desde Agosto que este livro andava a bichanar por aqui.

Douglas Stuart, já premiado com o Booker Prize, escreveu que Como Construir Um Barco é um dos raros livros que no fazem sentir menos sós.

Elaine Feeney apenas conhecia de nome.

Gosto de descobrir novos autores.

O José Cardoso Pires dizia que lemos pelo prazer de ler, lemos para ter inquietação.

Pode-se viver sem ler?

Penso que não, também sei que quem não lê vive pior.

Em tempos de inquietação, inquietação, é reconfortante saber como se pode, com a leitura deste livro de Elaine Feeney, encontrar pequenas coisas que podem mudar vidas.

OLHAR AS CAPAS


 

Como Construir um Barco

Elaine Feeney

Tradução: Rui Elias

Capa: Rui Garrido

Publicações Dom Quixote, Lisboa, Julho de 2024

Já estavam casados há quase uma década e, para evitarem equívoco na forma como comunicavam, haviam-se tornado cordiais e coerentes um com o outro.

ALMADA CONTREIRAS (1941-2025)


 De doença súbita, aos 83anos, na quarta-feira, morreu Almada Contreiras, militar de Abril.

«A senha que estava escolhida era o Venham Mais Cinco, de José Afonso, já inscrita no plano de operações. Mas, afinal, não podia ser o Venham Mais Cinco. A canção estava censurada e não podia passar na Renascença. E foi assim, num minuto, que Almada Contreiras se viu a escolher uma senha alternativa: Grândola, Vila Morena.
Quando me encontrei aqui no dia 22, pelas 14 horas, com o Álvaro Guerra [na altura jornalista que fazia a ponte com os militares, escritor e depois embaixador] ele diz-me que o
Venham Mais Cinco estava proibida na Rádio Renascença, no programa Limite e aí imediatamente passámos para uma segunda fase, que foi escolher o Grândola, Vila Morena”

Grândola Vila Morena também poderá ser uma canção de Natal -  porque é uma canção de Esperança, eternamente lembrada nas muitas frustradas esperanças que nos vão acontecendo nestes 50 anos de Abril.

 Lemos o perfil de Almeida Contreiras e isso traz-nos de arrasto o militar que nos pretendem impingir como futuro presidente da república.

sábado, 21 de dezembro de 2024

COISAS EXTINTAS OU EM VIAS DE...


Ontem, ficámos a saber que o último filme de Clint Eastwood não passará numa sala de cinema.

Entretanto, João Pedro Pincha colocava, na edição do Público de 3 de Dezembro, a notícia  que o Atlântida Cine, o último cinema de bairro da linha de Cascais, está à venda.

O Atlântida Cine abriu portas em 1983 na cave do Centro Comercial de Carcavelos. Em Maio anunciou um encerramento temporário com a velha lenga-lenga que o encerramento servia para «férias e obras de melhoramento».

No Facebook do Atlântida surgiram muitas mensagens: «Voltem rápido! Melhor cinema da linha», «O Atlântida é um bem cultural raro. Não se pode perder».

Fonte da autarquia de Cascais já confirmou que já iniciou conversações para a compra do Atlântida.

Também sabemos destas lengas-lengas.

A linha de Cascais chegou a ter uma razoável quantidade de salas de cinema. O Atlântida era a última.

O repórter finaliza a notícia dando conta que «as sessões eram precedidas por Nat King Cole, Ella Fitzgerald e outras vozes do jazz. O gong suava duas vezes e a cortina abria-se de par em par enquanto as luzes diminuíam.

Os últimos filmes a serem exibidos foram a Natureza do Amor e Ainda Teremos Amanhã. Os cartazes ainda lá estão».

Sempre se foi dizendo que a televisão haveria de roubar espectadores ao cinema!...


sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

O PORMENOR


Hoje, no Público, o crítico Luís Miguel Oliveira classifica o último filme de Clint Eastwood, como «um gigantesco filme», arrepiante, que não poderá ser visto nas salas de cinema, apenas poderá ser na plataforma Max.

Miguel Oliveira, na crítica que faz ao filme realça este pormenor:

«…quando o advogado pergunta ao único jurado negro do painel se ele já esteve envolvido em situações de violência familiar e o homem lhe responde “vai perguntar isso a todos ou só a mim?”.»


quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

MÚSICA PELA MANHÃ


 O escultor José Dias Coelho foi assassinado pela PIDE no dia 19 de Dezembro de 1961, na Rua da Creche, junto ao Largo do Calvário. rua que hoje tem o seu nome.

O assassinato está assinalado na canção de José Afonso A Morte Saiu à Rua do álbum Eu Vou Ser Como a Toupeira, gravado em 1972, letra de António Quadros (pintor), música de José Afonso.

Antes de ser assassinado, José Dias Coelho estivera em casa de Mário Castrim que, na altura, morava na Rua Luís de Camões, perto da estação dos carros eléctricos de Santo Amaro. 

No livro Viagens,  o poema Viagem Através de Uma Fatia de Bolo-Rei, Mário Castrim pormenoriza as últimas palavras, os últimos momentos de vida de José Dias Coelho:

Corria o ano de 1961.


Estávamos à porta do Natal.


Eram quase duas horas da manhã

e eu perguntei-lhe

se queria comer alguma coisa.

Disse que sim. Mas que

estava com muita pressa.

 

Enquanto vestia a gabardina, trouxe-lhe

uma sanduíche de fiambre

um copo de vinho

uma fatia de bolo-rei.

Estava de pé

comia como se fosse a primeira vez

desde a infância.

 

- Há quantos anos

deixa cá ver

há quantos anos é que eu não comia

bolo-rei?

Este é bom, sabe a erva-doce

e a ovos.

(Caíam-lhe migalhas

aparava-as com a outra mão

em concha)

 

- Comes outra fatia, camarada?

 

- Isso não.

Estou atrasado já.

Mas se ma embrulhasses...

 

Através da janela

do quarto às escuras

fico a vê-lo atravessar a Rua da Creche

seguir pela Rua dos Lusíadas.

 

Nenhum de nós sabia

que estava já erguida a pirâmide do silêncio

à espera dele

num breve prazo.

 

Quando talvez o gosto do bolo-rei

mais forte do que nunca

tivesse ainda na boca.

Funcionário clandestino do Partido Comunista, José Dias Coelho seguia pela Rua dos Lusíadas, quando cinco agentes da PIDE, saltaram de um automóvel e alvejaram-no, à queima-roupa, com um tiro no peito, e dispararam outro tiro quando já se encontrava por terra.

Legenda:  A imagem de topo é uma gravura de José Dias Coelho, representando o operário Cândido Martins, assassinado na frente da manifestação do Barreiro contra a burla eleitoral e publicada no “Avante” nº 130 de Novembro de 1961. Para a que seria a sua última gravura, José Dias Coelho escreveu: «De todas as sementes deitadas à terra, é o sangue derramado pelos mártires que faz levantar as mais copiosas searas.»

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

O POETA

Trabalha agora na importação
e exportação. Importa
metáforas, exporta alegorias.
Podia ser um trabalhador
por conta própria,
um desses que preenche
cadernos de folha azul com
números
de deve e haver. De facto, o que
deve são palavras; e o que tem
é esse vazio de frases que lhe
acontece quando se encosta
ao vidro, no inverno, e a chuva cai
do outro lado. Então, pensa
que poderia importar o sol
e exportar as nuvens.
Poderia ser
um trabalhador do tempo. Mas,
de certo modo, a sua
prática confunde-se com a de um
escultor do movimento. Fere,
com a pedra do instante, o que
passa a caminho
da eternidade;
suspende o gesto que sonha o céu;
e fixa, na dureza da noite,
o bater de asas, o azul, a sábia
interrupção da morte.

 

Nuno Júdice

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

POSTAIS SEM SELO


Sê paciente; espera que a palavra amadureça e se desprenda como um fruto ao passar o vento que a mereça.

Eugénio de Andrade

UM VOLTAR AOS VELHOS CADERNINHOS

«Desejamos-lhe um Feliz Natal
este é o tempo da boa vontade
entre todas as pessoas
e os seus comerciantes
Não saia de casa sem o seu cartão de crédito
ou de débito
e não se esqueça
que se não oferecer aos amigos
tudo o que eles não desejaram
(peúgas, bibelots, tachos e abat-jours)
eles deixarão de ter respeito por si
e abandoná-lo-ão à porta do centro comercial
como qualquer trapo inútil
vazio e triste.»

Colaboração de Aida Santos

REGRESSO

Já voltei a casa, as portas rangem,

o pó tomou conta de todos os móveis,

deixando-me de pé, a balançar as chaves,

e a interrogar-me sobre o que não fiz.

 

O tempo que resta não é para confissões

nem para ajustes de contas:

pois quem guarda o guardião, quem despe a roupa

das vestais do templo?

A água corre ainda, um fio sequer, de torneiras

em desuso. Respiro e não deixo de olhar.

Até ao fim não deixarei de olhar.

 

Que trabalho é este, oculta e extinta miséria

sob os nossos passos?

As janelas com os vidros quebrados, o plástico

por cima dos horizontes perdidos

da transparência. Porque insistes? Porque ficas

à entrada da casa, perdido no olhar

e na memória do que nunca chegou a ser?

 

Luís Filipe Castro Mendes em Poemas Reunidos

domingo, 15 de dezembro de 2024

O OUTRO LADO DAS ESTANTES


 

Um livro grosso, alto, largamente ilustrado com fotografias, que entrou na Biblioteca da Casa em Maio de 1967, trazido, de Roma, por um amigo do meu pai, editado em francês pela Novosti, sem indicação de data.

Aborda uma das muitas terríveis guerras que o mundo já viveu e que ocorreu de de 1 de Novembro de 1955 até à queda de Saigão em 30 de Abril de 1975, e travada entre o Vietnam do Norte e o governo do Vietnam do Sul. O exército norte-vietnamita era apoiado pela União Soviética, China e outros aliados comunistas, enquanto os sul-vietnamitas eram apoiados pelos Estados Unidos, Coreia do Sul, Austrália e outras nações anticomunistas.

 Desta guerra disse, em Maio de 1967. o norte-americano Cardeal Spellman:

O Século de Fevereiro de 1973 reproduzia um artigo de Peter Goldman, lembrando as palavras do presidente Nixon sobre o fim da guerra no Vietnam.


Cerca de três milhões de vietcongs mortos, incluindo dois milhões de civis.

Cerca de 60mil  militares norte-americanos mortos, grande parte negros e latino-americanos. Foram gastos 220 mil milhões de dólares, 300 mil vietnamitas desaparecidos, 1800 americanos desaparecidos.

Calcula-se que, para matar um vietcong, os Estados Unidos gastaram 675 mil dólares.

Foram transportados 10 milhões de americanos em aviões comerciais.

Foram utilizadas 15,35 milhões de toneladas de bombas.

Ainda hoje morrem vietnamitas, vítimas de minas e bombas não deflagradas. Desconhecem-se quantas minas, bombas e obuzes continuam por explodir.

MÚSICA PELA MANHÃ

Aretha Franklin gravou, ao vivo, Amazing Grace em Janeiro de 1972 na New Temple Missionary Baptist Church em Los Angeles , com o reverendo James Cleveland e o Southern California Community Choir.

Simplesmente arrepiante.

Como observou um crítico: parece que Deus e os anjos estão a cantar ao lado de Aretha.

Nos 500 maiores álbuns de todos os tempos, Amazing Grace  ocupa a posição nº 154.   




Colaboração de Aida Santos.

sábado, 14 de dezembro de 2024

DISTO, DAQUILO E DAQUELOUTRO


 E chegámos a isto!...

1.

O lento caminhar em busca de natais suportáveis. 

Ainda é possível?

2.

Tóquio adopta semana de quatro dias para tentar o aumento da natalidade.
A partir de Abril de 2025, os trabalhadores da administração pública de Tóquio irão trabalhar apenas quatro dias por semana. A medida é mais um dos passos para reverter as baixas taxas de natalidade do Japão nos últimos anos. O país está a caminho do 16.º ano de declínio da população.

3.

As fortunas mundiais superiores a mil milhões de dólares aumentaram 121% entre 2015 e 2024 e o número de multimilionários passou de 1757 para 2682, segundo o relatório anual sobre grandes patrimónios elaborado pelo banco UBS.

4.

De uma crónica Gonçalo M. Tavares no Expresso:

«Um escritor uma vez disso: “Há dois tipos de pessoas. Evite os dois».

5.

Mil dias da invasão russa por terras da Ucrânia.

Lido por aí: concluir que nem Joe Biden, nem a NATO alguma coisa fizeram para evitar a guerra, antes pelo contrário: desejaram-na!

6.

Platão, citado por Mia Couto:

«Há três espécies de homens: os vivos, os mortos e os que andam no mar.»

7.

De uma crónica de Ana Cristina Leonardo publicada no Público:

«O divertissement implica tempo, claro. Um tempo parado, contemplativo, contrário ao tempo da aceleração exponencial. E as brincadeiras dos cães lembraram-me agora uma história. Uma história por demais conhecida. Contava-a António Alçada Baptista:
Andava o Padre Anchieta por terras do Brasil. Com pressa no chegar, pede o jesuíta aos índios que lhe transportam a tralha que sejam despachados no passo. O destino fica longe, a dias de caminhada. No primeiro dia os índios foram céleres, assim como no segundo. Inesperadamente, ao terceiro descansaram. Surpreendido, pergunta-lhes o padre pelo motivo da pausa. A explicação chegou rápida e era simples: “Temos vindo demasiado depressa e a nossa alma ficou para trás. Temos de esperar por ela para podermos continuar”.»

8. 

 


Recorte retirado da página de Economia do Expresso de 22 de Novembro.

A ORIGEM HONRADA DA CASA

«Como quem ouve uma melodia muito triste, recordo a casinha em que nasci, no Caleijão. O des­tino fez-me conhecer casas bem maiores, casas onde parece que habita constantemente o tumulto, mas nenhuma eu trocaria pela nossa morada coberta de telha francesa e emboçada de cal por fora, que meu avô construiu com dinheiro ganho de riba da água do mar. Mamãe velha lembrava sempre com orgu­lho a origem honrada da nossa casa. Pena que o meu avô tivesse morrido tão novo, sem gozar direi­tamente o produto do seu trabalho.

E lá toda a minha gente se fixou. Ela povoou-se das imagens que enchiam o nosso mundo. O nasci­mento dos meninos. O balanço da criação. O traba­lho das hortas e a fadiga de mandar a comida para os trabalhadores. A partida de Papai para a América. A ansiedade quando chegavam cartas. Os melhora­mentos a pouco e pouco introduzidos com os dóla­res que recebíamos. Mamãe deslisava como uma sombra silenciosa no tráfego da casa. Mamãe-Velha não parava, indo de um lado para outro, como se nada pudesse fazer-se sem a sua fiscalização e os seus gritos. A minha avó só sabia querer a sua gente descompondo.»

Baltasar Lopes em  Chiquinho

OLHAR AS CAPAS


Misericórdia

Lídia Jorge

Capa: Rui Garrido

Publicações Dom Quixote, Lisboa, Novembro de 2022

Este é o meu lugar de exílio. Aqui me depositaram a meu pedido e por minha livre vontade, vinda de casa dos meus pais, e onde não mais voltarei, também por minha livre determinação. A vida é um arco, tem oi seu começo e o seu fim, inicia-se num berço, e faz o seu voo ascendente, e a partir de certa altura a curva desce até nos entregarmos à terra, de novo dentro de uma caixa de madeira que em nada difere de um berço.

Colaboração de Aida Santos

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