quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?


Coimbra, 26 de Dezembro de 1977

Chego e leio a notícia do falecimento de Charlie Chaplin. E, quase sem eu querer, a imagem do Charlot a que deu vida e universalidade sobrepõe-se instantaneamente no meu espírito à do seu criador, numa consoladora sensação de luto aliviado. Sim o mundo está mais pobre. Um génio que o habitava desapareceu para sempre. Só que esse génio de tal maneira se transmutou na sua criatura, que de há muito ela lhe ocupa o nicho no altar dos meus santos. É, de facto, o vagabundo do bigodinho, das calças largas e rotas, das botas cambadas, do coco e da bengalinha que vive entronizado na minha admiração, desde que na juventude o vi pela primeira vez na pele de um D. Quixote cordo e travesso a desafiar os gigantes da ordem estabelecida como se eles fossem moinhos de vento. O Zé-ninguém a arteiro de A Quimera do Ouro, do Circo e dos Tempos Modernos, que nunca vence nem é vencido, que não desiste mesmo quando parece abandonar a luta, que sabe encontrar sempre o largo caminho da liberdade em todos os becos sem saída, é que é meu semelhante, é que irradia calor humano, é que infunde coragem e dá esperança, é que me espevita a imaginação. E esse, graças a Deus, não morreu nem morrerá.

Miguel Torga em Diário Vol. XIII, Publicações Dom Quixote, Lisboa Novembro de 1999.

Legenda: final de Tempos Modernos.

2 comentários:

filhote disse...

Não conhecia o texto... notável!

E, já agora, meus amigos, o desejo de boas festas!

sammyopaquete disse...

Também um grande abraço para ti, mesmo tendo em conta que tudo está tão difícil...