Muita gente me acusa de ser o culpado do estado de desgraça do nosso
país por ter reprovado Pedro Passos Coelho numa audição em que eu procurava um
cantor para fazer parte do elenco de My Fair Lady. Até o espertíssimo gato fedorento Ricardo Araújo
Pereira já afirmou que eu devia ser chicoteado em público todos os dias até
Passos Coelho desistir de ser primeiro-ministro, como insistentemente o
aconselha o Dr. Soares.
Na verdade, confesso que em 2002, quando preparava os ensaios para
levar à cena My Fair Lady fiz
uma série de audições a cantores para procurar o intérprete do galã apaixonado
por Elisa Doolittle, a pobre vendedora de flores do Covent Garden, personagem
saída da cabeça brincalhona e maniqueísta de Bernard Shaw, genial dramaturgo
que no seu tempo se fartou de gozar com políticos. Entre muitos concorrentes à
audição, apareceu Pedro Passos Coelho de jeans, voz colocada, educadíssimo e bem-falante. Era aluno de
Cristina de Castro, uma excelente cantora dos tempos de glória do São Carlos
que tinha sido escolhida por Maria Callas para contracenar com a diva naTraviata quando da sua passagem
histórica por Lisboa. As recomendações portanto não podiam ser melhores e a
prova foi convincente. Porém, Passos Coelho era barítono e a partitura exigia
um tenor. Foi por essa pequena idiossincrasia vocal que Passos Coelho não foi
aceite, o que veio a ditar o futuro do jovem aspirante a cantor que, em breve,
ascenderia a actor protagonista do perverso musical da política. Se não fosse a
sua tessitura de voz de barítono, hoje estaria no palco do Politeama na Grande Revista à Portuguesa a
dar à perna com o João Baião, a Marina Mota, a Maria Vieira, e talvez fosse muitíssimo
mais feliz. Diria mal da forma como o Estado trata a cultura em Portugal,
revoltar-se-ia com os impostos que o teatro é obrigado a pagar, saberia que um
bilhete que é vendido ao público a dez euros, sete vão para o Estado, teria um
ataque de nervos contra os lobbies da Secretaria de Estado da Cultura, há
quarenta anos sempre os mesmos... não saberia sequer o nome do obscuro e
discretíssimo secretário da Cultura oficial, não perceberia porque em Portugal
não há uma Lei do Mecenato que permita aos produtores de espectáculos cativar
os mecenas, tal é a volúpia cega dos impostos, saberia que cada vez mais há
artistas no desemprego em condições miserabilistas e degradantes, que fazer
teatro, cinema ou arte em Portugal se tornou um acto de loucura e de militância
esquizofrénica. Mas a cantar no palco do Politeama estaria bem longe da
bomba-relógio do Dr. Paulo Portas, cada vez mais fulgurante como pop-star, da troika, agora terrível e
pós-seguramente medonha, das reuniões de quinta-feira com o Senhor Professor,
do Gaspar que se pisgou para o Banco de Portugal, dos enredos do partido bem
mais enfadonhas do que as animadas tricas dos bastidores do teatro, das
reuniões intermináveis com os alucinados ministros, das manifestações dos
professores, dos polícias, dos funcionários públicos, dos pescadores, dos
estivadores, dos reformados, dos trabalhadores de tudo o que mexe e não mexe em
cima deste desgraçado país, ah!, e das sentenças do Palácio Ratton que agora
são chamadas para tudo, só para tramarem a cabeça intervencionada do pobre
Pedrinho... não bastava já as constantes birrinhas do Tó Zé Seguro, as
conversas da tanga do Dr. Durão Barroso, o charme cínico e discreto de Madame
Christine Lagarde, as leoninas exigências da mandona da Europa para Bruxelas
assinar a porcaria do cheque. Valha-me o Papa Francisco que tudo isto é de mais
para um barítono!
Assumo o meu mais profundo remorso. Devia ter proporcionado ao rapaz um
futuro mais insignificante mas mais feliz. Mas, tal como Elisa Doolittle, que
depois de ser uma grande dama prefere voltar a vender flores no mercado de
Covent Garden, talvez o nosso herói renegue todas as vaidades e vicissitudes da
política e suba ao palco do Politeama para interpretar a versão pobrezinha mas
bem portuguesa de Os Miseráveis!
PS. O
artigo foi escrito em português antigo. No Teatro Politeama nem as bailarinas
russas aderiram ao Acordo Ortográfico.
Filipe La Féria, ontem no número comemorativo dos 149 anos
do Diário
de Notícias.
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