domingo, 8 de dezembro de 2013

NELSON MANDELA


Entre 1964 e 1976, Alden Whitman fez centenas de obituários para o The New York Times e fez desse género uma arte. Escrevia os obituários de avanço e aperfeiçoava-os pedindo entrevistas ao futuro morto. Nesses encontros, ele tinha o pudor de não dizer porque estava ali, mas o ex-Presidente Harry Truman, homem prático, foi direito ao assunto: "Sei porque está aqui, pergunte lá..." Eu não faço obituários, mas sabia que iria escrever na morte de Nelson Mandela. Sabia também que seria incapaz de escrever de avanço sobre ela. E sabia ainda, na hipótese inverosímil de entretanto encontrar Mandela, que nesse encontro não lhe pediria memórias para um obituário. Pela razão inversa que está expressa na frase de Harry Truman: ali, havia só uma personagem (o ex-Presidente) e um mediador (o jornalista). Ora, se o assunto é a morte de Mandela, um encontro meu com ele trazia uma outra personagem: eu. Há meses, no princípio do verão, já a agonia de Mandela se anunciara, escrevi aqui uma crónica sobre a condição social que mais me determinou: ser africano branco, engajado na independência da minha terra e consciente também sobre o que ela podia trazer de mau, o exílio, para os meus mais próximos. Escrevi: "Apetece-me dizer isto hoje porque a minha vida só faz sentido porque houve um líder como Nelson Mandela. Sem ele eu sentir-me-ia abusado, dano colateral, mexilhão. E não, não sou." Há pessoas assim, morrem e só nos dá para falar de nós.

Ferreira Fernandes no Diário de Notícias

Sem comentários: