terça-feira, 22 de dezembro de 2015

AS MESMAS HISTÓRIAS QUE ME TINHAM CONTADO


 Este Natal surgiu um imprevisto.

As minhas netas mais novas - a Vera de seis anos e a Leonor de oito - chegaram da escola bastante perturbadas. A professora - custa-me chamar-lhe assim, mas parece que é essa a profissão que lhe dá alimento - dissera-lhes que essas histórias de Natal, Pai Natal, presentes e Menino Jesus eram tudo tretas e que estavam em boa idade de deixar de acreditar nelas. As mães respectivas esforçaram-se a convencê-las que elas tinham percebido mal e que, em 2006, como em todos os Natais de que elas se lembram, o Menino Jesus voltaria a pôr-lhes nos sapatinhos os presentes que elas pedissem e merecessem. Ambas verificaram que foram vencedoras fáceis. Não pelos argumentos que usaram, não pela natural superioridade da palavra materna sobre a palavra escolar, mas porque elas queriam ser convencidas, porque elas não queriam outra coisa senão continuar a acreditar. Espero bem que este ano, talvez pela última vez, elas acreditem e que o Natal ainda seja para a Leonor e para a Vera aquele momento mágico em que tudo pode acontecer, porque se acredita que tudo pode acontecer.

Mas perguntei-me por que é que em três gerações (a minha, a dos meus filhos e a dos meus netos) era a primeira vez que a origem dos presentes de Natal não resultava de uma descoberta própria - mais ou menos dolorosa, mas própria -, mas fora denunciada por uma "professora", ou por alguém que ocupa essas funções, que se achava no direito - talvez no dever - de desmentir os pais e de entrar na esfera privada da vida das crianças que é suposto educar.

Ignoro se a professora tem convicções religiosas ou as não tem. Suponhamos, no segundo caso, que ela resolve um dia dizer às crianças que essa história de Deus é outra léria, e as exorta a não acreditar em nada. A hipótese, agora, já não me parece nada inverosímil.

Lembro-me muito bem do que se passou comigo. Aí pelos meus 8-9 anos, um colega da escola (para esta e outras coisas era sempre um colega da escola) disse-me qual Menino Jesus qual carapuça, eram os pais que me davam os presentes de Natal.

Estou a ver ainda a casa de jantar da minha Avó e o lugar em que se sentava a minha Mãe, quando eu lhe perguntei onde estava a verdade. Ela respondeu-me que efectivamente, etc., e, com palavras mais ou menos pedagógicas, confirmou-me as piores suspeitas. Não sei se foi nestes termos, mas a minha pergunta seguinte punha-a em causa: afinal ela mentia, ou afinal ela mentira. Explicou-me que não se tratava de mentira, mas de dar um bocado de magia a um momento mágico, ou qualquer coisa do género. Não fiquei lá muito convencido e o Natal seguinte foi triste. O céu já não era o limite, mas a bolsa dos meus pais. Sempre fora, mas eu não o sabia. Com o passar dos anos, algum ressentimento, se o houve, desapareceu por completo e esse momento, se foi marcante, não foi, de forma alguma, traumático.

Quando chegou a minha vez de ter filhos, não tive quaisquer dúvidas, logo que eles chegaram à idade dos Natais, em lhes contar as mesmas histórias que me tinham contado, como as tinham contado à minha mãe, como as tinham contado aos meus avós.
(…)
Dê-se a cada idade o mistério que a cada idade convém. E, em nome da verdade, não se tinja de um suposto real o que não cabe em nenhuma categoria de real.
Por isso, se eu nunca me atreveria a meter presépios e a frágil tradução do ouro, incenso e mirra em crianças cujos pais recusam em absoluto versões terrenas pintadas a céu, tenho toda a razão para me indignar quando adultos interferem com o que para mim é verdadeiro, em nome de uma suposta veracidade material.
A professora das minhas netas profanou uma inocência e interferiu onde não podia nem devia interferir. Meteu-se no meu Natal e esse direito nunca lho dei, nem nunca lho deram os pais das crianças. Ao que ela fez, entre muitas outras palavras feias, chama-se abuso de poder. Abuso de poder sobre uma criança é uma das piores coisas que se podem fazer.

João Bénard da Costa, excertos de uma crónica, publicada pelo Público e que faz parte do 3º volume de Crónicas: Imagens Proféticas e Outras.

Legenda: pormenor do Presépio do Patriarcado de Lisboa em S. Vicente de Fora em OPresépio Barroco Português

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