A morte de João Lobo Antunes é uma perda irreparável e deixa um enorme lastro de tristeza.
A Visão
recorda uma crónica de António Lobo Antunes: O Meu Irmão João.
É talvez a pessoa que conheço melhor no mundo e
todavia quase não falamos. Para quê? São desnecessárias as palavras entre nós,
passámos mais de vinte anos, acho eu, no mesmo quarto, num silencioso princípio
de vasos comunicantes que até hoje se mantém. Para além do muito amor que
raramente lhe manifestei tenho uma imensa admiração por ele e um orgulho sem
limites. Herdou do nosso pai (herdaste do pai, sim, tem paciência) a
honestidade, o carácter, a coragem e o horror à mentira. Desde criança foste
sempre valente. Se assim à má fila me ordenassem que dissesse duas
características tuas respondia logo a valentia e o pudor, formas supremas da
elegância. E isto desde que te conheço, tu que nasceste vinte meses depois de
mim (o número vinte deu-lhe para me perseguir hoje) que era cobarde e
despudorado e custou-me tanto ver-me livre dessa ganga nojenta, zangado de
vergonha comigo. Foste sempre digno e discreto contigo mesmo e com os outros e
bem sei, sem mo teres dito, as dificuldades e as dores que sofreste, a carne
viva que escondes e eu vejo, a compaixão que não mostras e eu sinto. E a tua
oculta e bondosa generosidade. O rigor também, a falta de complacência para com
a ingratidão, a pulhice, os sentimentos rasteiros. Claro que tens defeitos:
alguns divertem-me, outros enternecem-me, nenhum me incomoda, talvez por serem
os defeitos das tuas qualidades da mesma maneira que um automóvel possui os
travões adequados à potência do motor. Se fosse Deus não mudava grande coisa em
ti: talvez trocasse um móvel de posição, alterasse uma jarra, substituísse um
quadro. Na casa não mexia: agrada-me que seja como é. E depois claro que te foi
dada uma inteligência superior e isso não vale a pena mencionar porque no meu
caso não me serve de nada, ninguém é tão estúpido como um homem inteligente e
muitas das asneiras que f z conhece-las de ginjeira. Lembras-te da mãe - Tão
inteligentes para umas coisas, tão estúpidos para outras mas eu canalizei tudo
para a escrita, construí-me para isso e os teus interesses são mais variados
que os meus. E no meio disto somos tão ingénuos ambos, sensíveis à lisonja, por
vezes completamente parciais, cegos em relação aos amigos, de julgamento
turvado quando os afectos se misturam nele. É curioso como, sendo diferentes,
temos coisas idênticas. O pai não queria filhos, queria campeões de karaté.
Conseguiu-os e o preço disso foi uma parte nossa amputada e uma sede de amor
sem limites, em ti cuidadosamente escondida. A gaita é que eu sou desbocado e
tu não, vivo nas nuvens e tu só às vezes, porque eu vivo nas nuvens e das
nuvens e tu tens de confrontar-te com uma realidade imediata que te dá um peso
específico maior que o meu e uma relação necessariamente pragmática com certos
aspectos do quotidiano. Estou para aqui a escrever isto e a pensar na educação
que recebemos, normativa, implacável, no limite da impiedade e da dureza.
Quantas vezes nos revoltámos contra ela e, no entanto, que importante foi. Um
pai que competia connosco e, mais tarde, te invejava. É terrível a relação do
fi lho com o pai, julgando-se mutuamente numa ferocidade sem doçura. Nunca foi
doce. Nem tolerante. Que egoísmo horrível naquele homem. E por baixo disso tudo
uma vaidade em nós, ou antes uma vaidade nele dado imaginar (a imaginação não
era o seu forte, nem o sentido de humor, nem a criatividade) que nos havia
feito peça a peça e não fez. Não nos poupava mas poupava-se a si. Dito desta
forma parece que lhe quero mal. Não quero. Só que não me acho em dívida: o
preço foi alto. Levou a vida que quis, como quis, e impunha-nos à força a sua
vontade. É curioso, João: dá-me pena que tenha morrido. Movia-se por paixões,
entusiasmava-se e gostava de nós através das nossas filhas por lhe ser
impossível amar-nos abertamente. E contudo, mau grado o que acabo de dizer, não
duvido do seu amor e de um orgulho genuíno nos filhos, que fazia os possíveis
por disfarçar. Estou a ser injusto, de longe em longe descuidava-se. E apesar
do que afirmo, gaita, era, é o nosso pai. Não esqueço as palavras de Herculano
a propósito de Garrett que ele repetiu dúzias de ocasiões ao longo dos anos -
Por meia dúzia de moedas o Garrett é capaz de todas as porcarias, menos de uma
frase mal escrita ou da ordem de Filipe Segundo ao arquitecto do Escorial -
Façamos qualquer coisa que o mundo diga de nós que fomos loucos e como esses
dois preceitos se gravaram na gente. Isto foi importante para além do que
declarei a teu respeito e herdaste dele de facto: a honestidade, o rigor e a
coragem. É bom ser filho de um homem desta têmpera e essas qualidades nasceram
contigo. Talvez com outro pai houvesses sido igual, não sei. Capaz de todas as
porcarias menos de uma frase mal escrita: para mim foi um tiro na mouche. Em
cheio. E estou-lhe grato por isso. Estou-lhe grato também pelos irmãos que
foram aparecendo, a chorarem como uns danados até aos dois anos, raios os
partam. À mãe igualmente claro, de quem a avó nos dizia - Vocês matam a vossa
mãe numa convicção que me confundia. Via-nos a apunhalá-la com a faca do pão, a
da serrilha grande, e ela a torcer-se na cozinha. Felizmente sobreviveu à faca
e segue viva da costa. Agora, há uma semana, sucedeu aquilo do Pedro e de novo
te admirei, mano, a tua eficiência, a tua capacidade de decisão, o teu valor, a
rapidez pragmática do teu afecto, eu que de pragmático, pobre de mim, nada
tenho. Quando acabaste de operá-lo apeteceu-me beijar-te. Claro que não beijei
mas sabes que beijei: és o meu irmão João. Aquele a quem me une um silencioso
princípio de vasos comunicantes. E com que alegria repito isto dentro de mim: o
meu irmão João. O meu irmão João para sempre.
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