domingo, 16 de outubro de 2016

O FANHOSO DO MINNESOTA


O recorte está um tanto um quanto manhoso, quase ilegível.

Trata-se da coluna que Alexandre O’ Neill assinava em A Capital e a que chamou Chuva de Telhado.

Intitulou-a O Fanhoso do Minnesota, em A Capital  de 24 de Janeiro de 1974, e está englobada num dossier sobre o regresso de Dylan às tournées, a primeira na América desde há oito anos. Exclusivos de A Capital com o The Guardian (Michael Gray), The Washingtion Post (Tom Zito) e The Los Angeles Times (Robert Hilburn).

A crónica está incluída em Uma Coisa em Forma de Assim:

Mais do que uma característica vocal, a «fanhosez» (real ou por mim imaginada?) de Bob Dylan é uma qualidade estilística alimentada por uma recusa, um a contra-pelo de quem sabe, muito conscientemente, conter-se na efusão do sentimento e, até, «desmentir» no cantar a palavra que canta. Não que ele desminta a palavra a nível do conceito e da «mensagem». O que acontece é que Dylan a rejeita como lugar-comum cantabile, como repositório-comum de sentimentos pré-catalogados e como «air de bravoure». Diríamos que Dylan não maiusculiza nada. As massas verbais que, sem ornatos, debita dão conta de muita coisa bela, grande, divertida ou terrível, mas a força comunicante do trovador está, principalmente, no partido que ele tira da monotonia, repetição e progressão «fanhosas» de um texto maravilhosamente aliado à música. Este é um caminho de voluntária pobreza. Um mínimo de suportes e de efeitos, para um máximo de comunicação verbal. «Sentir? Sinta quem ouve!», apetece dizer, parafraseando Fernando Pessoa, a propósito do discurso de Bob Dylan.
Isso a que eu chamo de «fanhosez», que musicalmente deve ter uma explicação, muito em particular no campo da balada, ganha em Dylan as características de um estilo. Para muitos, tal estilo não passa de maneirismo. Mas Dylan sabe, com e depois de Wood Guthrie, de Pete Seeger e de Brassens, que a palavra só move mundos quando é entendida na sua integridade. E Dylan é, também, um excelente poeta, isto é, alguém capaz de entender que «o lirismo é o desenvolvimento de um protesto». Do «fanhoso» do Minnesota não se poderá dizer, como Flaubert de um cantor de ópera sua criatura: «Havia algo nele de cabeleireiro e toureiro».

Ponham nele os ouvidos certos baladeiros portugueses e espanhóis que fazem das palavras vazadouros dos mais simplesmente sentimentos.

Sem comentários: