O meu primeiro
contacto com João César Monteiro remete-me para a década de 70, quando começou
a fazer crítica de cinema para o Diário de Lisboa, tendo como companheiros o Eduardo Prado Coelho, o Lauro António e o Vitor Silva Tavares.
«Eu sempre disse por exemplo que o cinema sou eu. E
isto é uma afirmação que não tem nada de monárquico ou de centrista. Tudo o que
eu faço é singular, insubstituível.»
E ainda:
«Eu sou um realizador que não sabe efectivamente, «a
ponta de um corno». Sei que isto é horrível, mas é assim. Devo dizer que foi
com o poeta Carlos de Oliveira que mais aprendi de cinema.»
Fiquei com um
gosto assolapado pelo João.
Mais ainda
quando colaborou na folha cultural q. b. &.etc. principalmente,
quando lá escarrapachou A Minha Certidão:
Por volta dos 15 anos, fixei-me com a família em Lisboa, para poder prosseguir a minha medíocre odisseia liceal. Instalado no colégio do Dr. Mário Soares, acabei por ser expulso ao contrair perigosíssima doença venérea. Pensei, então, que entre a política e as fraquezas da carne devia existir qualquer obscena incompatibilidade, e nunca mais fui visto na companhia de políticos.
Eu e o meu pai,
volta e meia, íamos para a petisqueira e para a conversa e depois havia
«piolho»
Tudo corria
melhor, a cereja no topo do bolo, quando calhava um filme do João César
Monteiro.
Infelizmente só
vimos quatro filmes, a sua morte em 1990, roubou-me esse insubstituível prazer.
Para além do
génio, para além da arte, para além de tudo, os filmes do João César Monteiro
davam-nos um imenso gozo.
Foram estes os
filmes:
Veredas
no Quarteto, é neste filme que o meu pai, que já andava com ela fisgada, se rendeu à 7ª sinfonia de Bruckner.
Silvestre no
Cine-Bloco
À Flor do Mar no Ávila
Recordações da Casa Amarela no Fórum Picoas e éramos os únicos espectadores.
João César:
«A mim interessa-me fazer filmes para todos os públicos.
Noventa por cento da população do país não é um espectador de cinema e
provavelmente será esse o público mais inocente e disponível, porque menos
condicionado por certos códigos imperialistas. É um dever cívico fazer cinema
para essa gente, embora sem grandes esperanças de que a curto prazo possam ser
espectadores de cinema.»
Vitor Silva
Tavares:
«Melhor do que ele, ninguém escreve em português de -
e para - cinema. São os seus scripts (ou filmes da galáxia Guttenberg) de
lamber a língua canónica: volúpia e escarnho, ascese e escatologia numa
ondulação de tal modo ritmada que é já êxtase erótico, cópula astral. E mais,
de passo: Depois, quando iluminados por projecção mágica, viram ópera: teatro e
música enquanto, e só, artes sacras - comédias, bufonarias sejam,
libertinagens, profanações.»
Pego no guião de
Recordações da Casa Amarela, publicado no 2º volume da Obra Escrita de
João César Monteiro e entretenho-me a copiar a Cena 06 do filme.
João César
escreve que a cena 06 de Recordações da Casa Amarela se passa, de dia,
no restaurante Estrela da Sé.
«Ferdinando
sentado à mesa, serve-se de uma cabeça de garoupa com todos. Olha para fora de
campo e diz:
Ferdinando: Caríssimo
João de Deus: isso é reumático ou venéreo?
João de Deus
entra em campo, com o sobretudo vestido, aperta a mão a Ferdinando, enquanto
sussurra, debruçado sobre Ferdinando:
João de Deus: É
coisa que me apareceu nas virilhas.
João de Deus
senta-se em frente de Ferdinando.
Ferdinando (a
rir): Nas brilhas, como se diz no Porto. Manda vir qualquer coisa que se
trinque.
João de Deus: Não
me apetece, Ferdinando. Tenho a boca a arder e custa-me mastigar.
Ferdinando: Estamos
todos podres, é o que isso quer dizer. E a tua mãe?
Enquanto
Ferdinando se vai batendo com a cabeça
de garoupa, João de Deus puxa de um cigarro, acende-o e, com o cotovelo apoiado
no tampo da mesa, encosta a cabeça ao punho fechado.
João de Deus: Lá
anda.
Ferdinando: Madre
de Deus só há uma. Nunca o esqueças, meu filho.
João de Deus: Não
consegui foi escrever nada. Sou amigo do tipo. Pelo menos, fui amigo da mulher
e custa-me um bocado. Conheço-os há uma data de anos, ainda do tempo da outra
senhora.
A câmara
desloca-se ligeiramente para a esquerda, em travelling lateral, e descobre
Ferdinando, que suspende o garfo, junto à boca.
Ferdinando: Estás
a perder qualidades, Se me é permitido um reparo – não leves a mal - , por
vezes consegues ser contundente, mas nunca fulminante. Andas às voltas, não
vais direito ao assunto. Bebe nos clássicos, meu filho. Fulmina. Recordas-te da
polémica de Camilo com Mesquita Fialho?
A câmara
desloca-se ligeiramente para a direita, em travelling lateral, e descobre
Ferdinando, que muito devastou a pratada e emborca um copo de branco.
João de Deus: O
problema é que este não se chama Filho.
Ferdinando pousa
o copo na mesa e diz com toda a gravidade que se impõe:
Ferdinando: Mas
também deputa… filho.
João de Deus: Estou
farto de escrever imundícies.
Ferdinando está
boquiaberto.
Ferdinando: Mas
tu nunca arriscaste a ponta de um corno, nem sequer o nome.
As chatices com a «judite», os processos em tribunal,
as pesadas indemnizações, tudo te tem sido poupado. Nunca me vi confrontado com
um caso de tamanha ingratidão: metes-me nojo.
O criado entra
pela esquerda e levanta o prato de Ferdinando.
Ferdinando: Só
café e uma bagaceira fresquinha. Da casa.
O criado sai por
onde entrara. Percebe-se que Ferdinando acende uma cigarrilha. O criado entre
em campo com o café e o bagaço, pousa-os na mesa e volta a sair.
Ferdinando: Vá-me
tirando a continha, la dolorosa.»
Uma cena
maravilhosa.
Por alturas da
exibição do Silvestre em Lisboa, Mário Castrim abria, no Diário de
Lisboa uma sua crítica de televisão, dizendo que tinha ido ver o filme pela
segunda vez como quem se vai purificar nas águas do Jordão.
Sobre Silvestre,
o João César disse que era um filme para as pessoas que ainda conseguem
sentir-se crianças.
Agarrando na
frase, José Saramago escreveu que «é um filme que não infantiliza os adultos
que nós somos, mas adultiza as crianças que continuamos a ser.»
Fernando Lopes:
«Ao César perdoa-se tudo porque ele tem um talento que
se ri de si próprio. Em suma. É um grande demente que faz coisas muito belas.»
Ainda o João:
«Ninguém morre por não fazer filmes e se morrer é
idiota. Não avle a pena. Morre-se, sim, por fazer filmes, por na idade em que
se fazem as opções mais importantes (que não são necessariamente as mais
graves) se ter optado pelo ofício de cineasta, Agora estou sozinho diante das
estrelas.»
Tenho saudades
do João César Monteiro, do meu pai.
A falta que me
fazem!
2 comentários:
Fantástico!
Gostaríamos de dizer algo mais sobre os amáveis comentários que nos tem deixado.
Na falta dessas palavras, fica um sincero «muito obrigado!»
Enviar um comentário