segunda-feira, 15 de abril de 2019

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?


O meu primeiro contacto com João César Monteiro remete-me para a década de 70, quando começou a fazer crítica de cinema para o Diário de Lisboa, tendo como companheiros o Eduardo Prado Coelho, o Lauro António e o Vitor Silva Tavares.


«Eu sempre disse por exemplo que o cinema sou eu. E isto é uma afirmação que não tem nada de monárquico ou de centrista. Tudo o que eu faço é singular, insubstituível.»

E ainda:

«Eu sou um realizador que não sabe efectivamente, «a ponta de um corno». Sei que isto é horrível, mas é assim. Devo dizer que foi com o poeta Carlos de Oliveira que mais aprendi de cinema.»

Fiquei com um gosto assolapado pelo João.

Mais ainda quando colaborou na folha cultural q. b. &.etc. principalmente, quando lá  escarrapachou A Minha Certidão:

Por volta dos 15 anos, fixei-me com a família em Lisboa, para poder prosseguir a minha medíocre odisseia liceal. Instalado no colégio do Dr. Mário Soares, acabei por ser expulso ao contrair perigosíssima doença venérea. Pensei, então, que entre a política e as fraquezas da carne devia existir qualquer obscena incompatibilidade, e nunca mais fui visto na companhia de políticos.

Eu e o meu pai, volta e meia, íamos para a petisqueira e para a conversa e depois havia «piolho»

Tudo corria melhor, a cereja no topo do bolo, quando calhava um filme do João César Monteiro.

Infelizmente só vimos quatro filmes, a sua morte em 1990, roubou-me esse insubstituível prazer.

Para além do génio, para além da arte, para além de tudo, os filmes do João César Monteiro davam-nos um imenso gozo.

Foram estes os filmes:

Silvestre no Cine-Bloco
À Flor do Mar no Ávila
Recordações da Casa Amarela no Fórum Picoas e éramos os únicos espectadores.

João César:

«A mim interessa-me fazer filmes para todos os públicos. Noventa por cento da população do país não é um espectador de cinema e provavelmente será esse o público mais inocente e disponível, porque menos condicionado por certos códigos imperialistas. É um dever cívico fazer cinema para essa gente, embora sem grandes esperanças de que a curto prazo possam ser espectadores de cinema.»

Vitor Silva Tavares:

«Melhor do que ele, ninguém escreve em português de - e para - cinema. São os seus scripts (ou filmes da galáxia Guttenberg) de lamber a língua canónica: volúpia e escarnho, ascese e escatologia numa ondulação de tal modo ritmada que é já êxtase erótico, cópula astral. E mais, de passo: Depois, quando iluminados por projecção mágica, viram ópera: teatro e música enquanto, e só, artes sacras - comédias, bufonarias sejam, libertinagens, profanações.»


Pego no guião de Recordações da Casa Amarela, publicado no 2º volume da Obra Escrita de João César Monteiro e entretenho-me a copiar a Cena 06 do filme.

João César escreve que a cena 06 de Recordações da Casa Amarela se passa, de dia, no restaurante Estrela da Sé.


«Ferdinando sentado à mesa, serve-se de uma cabeça de garoupa com todos. Olha para fora de campo e diz:

Ferdinando: Caríssimo João de Deus: isso é reumático ou venéreo?

João de Deus entra em campo, com o sobretudo vestido, aperta a mão a Ferdinando, enquanto sussurra, debruçado sobre Ferdinando:

João de Deus: É coisa que me apareceu nas virilhas.

João de Deus senta-se em frente de Ferdinando.

Ferdinando (a rir): Nas brilhas, como se diz no Porto. Manda vir qualquer coisa que se trinque.

João de Deus: Não me apetece, Ferdinando. Tenho a boca a arder e custa-me mastigar.

Ferdinando: Estamos todos podres, é o que isso quer dizer. E a tua mãe?

Enquanto Ferdinando se vai  batendo com a cabeça de garoupa, João de Deus puxa de um cigarro, acende-o e, com o cotovelo apoiado no tampo da mesa, encosta a cabeça ao punho fechado.

João de Deus: Lá anda.

Ferdinando: Madre de Deus só há uma. Nunca o esqueças, meu filho.

João de Deus: Não consegui foi escrever nada. Sou amigo do tipo. Pelo menos, fui amigo da mulher e custa-me um bocado. Conheço-os há uma data de anos, ainda do tempo da outra senhora.

A câmara desloca-se ligeiramente para a esquerda, em travelling lateral, e descobre Ferdinando, que suspende o garfo, junto à boca.

Ferdinando: Estás a perder qualidades, Se me é permitido um reparo – não leves a mal - , por vezes consegues ser contundente, mas nunca fulminante. Andas às voltas, não vais direito ao assunto. Bebe nos clássicos, meu filho. Fulmina. Recordas-te da polémica de Camilo com Mesquita Fialho?

A câmara desloca-se ligeiramente para a direita, em travelling lateral, e descobre Ferdinando, que muito devastou a pratada e emborca um copo de branco.

João de Deus: O problema é que este não se chama Filho.

Ferdinando pousa o copo na mesa e diz com toda a gravidade que se impõe:

Ferdinando: Mas também deputa… filho.

João de Deus: Estou farto de escrever imundícies.

Ferdinando está boquiaberto.

Ferdinando: Mas tu nunca arriscaste a ponta de um corno, nem sequer o nome.
As chatices com a «judite», os processos em tribunal, as pesadas indemnizações, tudo te tem sido poupado. Nunca me vi confrontado com um caso de tamanha ingratidão: metes-me nojo.

O criado entra pela esquerda e levanta o prato de Ferdinando.

Ferdinando: Só café e uma bagaceira fresquinha. Da casa.

O criado sai por onde entrara. Percebe-se que Ferdinando acende uma cigarrilha. O criado entre em campo com o café e o bagaço, pousa-os na mesa e volta a sair.

Ferdinando: Vá-me tirando a continha, la dolorosa.»

Uma cena maravilhosa.

Por alturas da exibição do Silvestre em Lisboa, Mário Castrim abria, no Diário de Lisboa uma sua crítica de televisão, dizendo que tinha ido ver o filme pela segunda vez como quem se vai purificar nas águas do Jordão.

Sobre Silvestre, o João César disse que era um filme para as pessoas que ainda conseguem sentir-se crianças.

Agarrando na frase, José Saramago escreveu que «é um filme que não infantiliza os adultos que nós somos, mas adultiza as crianças que continuamos a ser.»

Fernando Lopes:

«Ao César perdoa-se tudo porque ele tem um talento que se ri de si próprio. Em suma. É um grande demente que faz coisas muito belas.»

Ainda o João:

«Ninguém morre por não fazer filmes e se morrer é idiota. Não avle a pena. Morre-se, sim, por fazer filmes, por na idade em que se fazem as opções mais importantes (que não são necessariamente as mais graves) se ter optado pelo ofício de cineasta, Agora estou sozinho diante das estrelas.»

Tenho saudades do João César Monteiro, do meu pai.

A falta que me fazem!

2 comentários:

Seve disse...

Fantástico!

Sammy, o paquete disse...

Gostaríamos de dizer algo mais sobre os amáveis comentários que nos tem deixado.
Na falta dessas palavras, fica um sincero «muito obrigado!»