Embora tenha por aqui
algumas na minha estante à espera de serem defloradas (Churchill, Hitler,
Estaline, Obama), a verdade é que nunca fui um grande leitor de biografias ou
autobiografias de políticos.
Se ainda assim tenho
tantas não terá sido por as ter comprado, mas sim porque uma boa parte são
daquelas que me vinham semanalmente parar às mãos, cortadas aos bocados, nos
tempos em que ainda tinha paciência para comprar e ler o jornal Expresso, as
quais fui acumulando e colocando despreocupadamente na prateleira, com a íntima
convicção de que muito dificilmente viria a ter tempo e paciência para lhes
pegar. A do Obama é uma exceção e está na lista das prioridades…
A minha formação
académica em Sociologia também faz com que não me preocupe muito com as
características de personalidade das figuras históricas e, muito menos, com
grandes detalhes acerca da sua vida particular. Interessa-me, muito mais, conhecer,
através delas, o tempo em que viveram, embora saiba muito bem que os Homens
fazem o Tempo, e que o Tempo molda os Homens.
Tomando por exemplo o
mais velho dos irmãos Kennedy, pouco me interessaria saber com quantas atrizes
de Hollywood andou ele enrolado, se o que se diz acerca da morte da Marilyn
foi, ou não, uma realidade, ou se é verdade que na Casa Branca ele tinha uma
salinha escondida sempre preparada para as suas escapadelas, como dá a entender
o Tim Burton no seu “Marte Ataca”. Interessar-me-ia, isso sim, através da sua
ação ficar a conhecer melhor como foram vividos do interior da Presidência
esses tempos do climax da Guerra Fria que foi a “Crise dos Misseis”, da luta
dos negros pelos seus Direitos Civis ou do combate à Mafia…
E depois, mesmo que
de tempos a tempos me pudesse passar pela cabeça pegar nalguma dessas
biografias esquartejadas, tenho a certeza que, de imediato, me saltaria o
anjinho mau do Cinema a berrar-me aos ouvidos: Hitler…? Quando ainda não
pegaste na autobiografia do William Castle, que já está nas tuas mãos há algum
tempo…? Estaline…?? Quando ainda nem te deste ao trabalho de concluir o “Un
Siècle de Cinema”, do Tay Garnett…? Churchill…??? Quando desejas tanto
encontrar e ler “When in Disgrace”, a caríssima autobiografia de Budd
Boeticher…?
E é claro que nestas
pequenas guerras, o Cinema sai sempre a ganhar…
Felizmente que na
altura ainda não era assim tão prendido a estas coisas do Cinema e que estes
pequenos dramas opcionais não se colocavam, porque há uma biografia de um
político que me lembro de ter lido muito cedo, em plena adolescência. É esta de
Abraham Lincoln que aqui vos mostro, que foi escrita por Nina Brown Baker, que
hoje sei ter sido uma escritora americana que se especializou em biografias
destinadas a um público juvenil.
Tal como tive a preocupação de deixar registado, tratou-se de uma oferta do meu irmão José Carlos no Natal de 1967, tinha eu acabado de fazer 14 anos. Fora editada em Portugal pela Livraria Civilização, em 1965.
O livrinho era curto,
as letras eram grandes e de quando a quando surgiam umas ilustrações adequadas,
pelo que se lia muito bem, mesmo por alguém que, como era o meu caso, nessa
idade estava longe de ser um leitor compulsivo (e ainda hoje o não sou…).
Lembro-me que a li
rapidamente e com prazer.
Recordo-me de me ter
comovido com o precoce falecimento da mãe de Lincoln e sobretudo, com aquela
cena em que, já Presidente, lhe querem dar uma boa notícia acerca da evolução
da Guerra, mas ele não deseja ser interrompido porque está sentado há horas
junto ao leito do seu filho mais novo, que viria a falecer poucos dias depois…
Não hei-de eu, ainda hoje, gostar tanto de melodramas…!
E foi assim que eu,
que na altura já estava em muito boa idade de largar os heróis de
fantasia da minha meninice (o Kit Carson, o Jim das Selvas, o Major Jaime
Eduardo de Cook e Alvega, …) passei a ter mais um herói de carne e osso para
colocar ao lado do Vitor Damas…
É claro que, mais tarde, vim a perceber que toda essa história da devoção do Norte pela libertação dos escravos sulistas tinha muito que se lhe dissesse e não obedecia, unicamente, a um ideal humanista, mas era, igualmente, um imperativo que um sistema capitalista em rápida ascensão tinha de alargar os seus tentáculos a toda uma extensa parte do país que se mantinha fechada como uma sociedade rural e, em muitos aspetos, até quase feudal. Libertando-se os escravos não só se obtinha uma nova mão-de-obra abundante, dócil e barata para alimentar as grandes indústrias emergentes no Norte dos Estados Unidos, como, igualmente, se poderiam alargar os negócios a toda uma enorme massa de novos consumidores que passaria a ter algum poder de compra, ainda que reduzido.
Muitos anos mais
tarde, no cinema, vi com prazer os filmes que tinham Lincoln como figura principal:
desde o de Griffith, de 1931, até ao mais recente do Spielberg (2012),
passando pelo “Abraham Lincoln in Illinois”, do John Cromwell (1940), e pelo
melhor de todos eles, o “The Young Mister Lincoln” do John Ford (1939).
Com toda esta devoção
“lincolneana”, não seriam umas míseras centenas de quilómetros que me iriam
impedir de fazer o trajeto entre Nashville e Hodgenville, no Kentucky, que foi
a terra onde Lincoln nasceu.
Em boa hora o fiz,
porque foi bom ter abandonado a autoestrada e atravessado aquelas magnificas e
solitárias estradas rurais que me fizeram sentir melhor o que é a América
profunda.
Mas façamos um pouco
de História.
Os pais de Lincoln,
Nancy e Thomas Lincoln, viviam numa pequena quintarola em Elizabethtown, no
Kentucky, na companhia da primeira filha do casal, Sarah. A aproximação do
nascimento de um segundo filho levou Thomas a procurar um novo terreno com
melhores condições.
Encontrou-o a uma
vintena de quilómetros a Sul de Elizabethtown. Uma quinta de razoável dimensão
(300 “acres”) que se chamava Sinking Spring, devido à existência de uma
corrente de água subterrânea, que Thomas Lincoln comprou por 200 dólares. A
quinta ficava perto do Moinho de Hodgen, que muitos anos mais parte viria a
estar na origem do nome da pequena cidade de Hodgenville.
Dois meses apôs a
mudança, em 12 de Fevereiro de 1809, nasceria o nosso Abraham.
A vida em Sinking
Spring corria de feição para a jovem Família Lincoln e o local onde viviam era
paradisíaco. Plantaram milho, feijão, abóboras e tudo o mais que fosse
necessário para providenciar a subsistência da família, e também dispunham de
algumas cabeças de gado. Água para tudo isso não lhes faltava…
Para além disso,
Nancy era tecelã e Thomas carpinteiro, pelo que não só faziam eles próprios a
roupa e o mobiliário de que necessitassem, como também pequenos negócios na
vizinhança.
Mas essa harmonia foi
Sol de pouca dura…
Os terrenos que
Thomas comprara não se encontravam devidamente legalizados e foram reclamados
em Tribunal por um anterior proprietário. Viu-se, assim, envolvido num conflito
judicial que se iria arrastar por muito tempo e o obrigaria a despender muito
do pouco dinheiro que tinha.
Imaginando que o
desfecho da Ação judicial não lhe seria favorável (como, na realidade, o não
foi…), Thomas antecipou-se e a poucos quilómetros a Norte da quinta de Sinking
Spring adquiriu um terreno mais modesto num local chamado Knob Creek, devido à
proximidade de um riacho com o mesmo nome, e para lá mudou a família em 1811,
teria Abraham pouco mais de 2 anos.
Foi nesse local,
igualmente belo, que Lincoln viveu a sua meninice, mas apenas até cerca dos
seus 8 anos de idade, porque um novo imbróglio judicial respeitante à compra
deste terreno fez com que Thomas Lincoln decidisse levar a Família para o
Indiana, onde já tinham também diversos parentes instalados. Desta vez Thomas
iria ganhar, anos mais tarde, a sua disputa judicial, mas a Família não mais
regressaria ao Kentucky.
São estes dois
lugares, Sinking Spring onde ele nasceu e Knob Creek onde viveu dos dois até
perto dos oito anos, que hoje constituem o “Abraham Lincoln Birthplace National
Historic Site”.
Contada a História,
será também interessante ver agora, para se compreender como é que estas coisas
das negociatas funcionavam já nos Estados Unidos cerca de 130 anos atrás, a
pequena história que está na origem da criação destes parques.
Como se compreende,
quando faleceu, em 15 de Abril de 1865, Lincoln estava longe de ser uma figura
consensual nos Estados Unidos. Uns veneravam-no, outros odiavam-no…
Pouco tempo após a sua morte o Congresso dos Estados Unidos aprovou uma medida que tinha em vista a preservação do local de nascimento de Lincoln, enquanto homenagem e memória futura.
Mas essa medida não
provocou um entusiasmo generalizado e, sobretudo, nunca foram libertadas as
quantias indispensáveis à sua concretização, pelo que o lugar ficou entregue à
sua sorte durante as três décadas que se seguiram.
Em 1894, antecipando
a possibilidade de fazer um bom negócio devido à proximidade do centenário de
Lincoln, um empresário de Nova Iorque, de nome Andrew Dennett, comprou o
terreno com o objetivo de lá construir um hotel e um parque temático. E,
juntamente com o terreno, comprou também a cabana que se julgava ser aquela
onde Lincoln tinha nascido.
Mas o negócio não correu tão bem como se esperava. O hotel nunca chegou a ser construído e Andrew Dennet optou por desmantelar a cabana e pô-la em exibição em diversas cidades dos Estados Unidos, com entrada paga, é claro. Terminada essa “tournée” os troncos de madeira que constituíam a cabana regressaram ao local original e aí ficaram armazenados.
À medida que os anos
foram passando foi crescendo um interesse mais sério em organizar uma homenagem
a Lincoln no seu centenário, se possível utilizando o local do seu nascimento
para aí instalar um monumento comemorativo e, sob a égide do jornal semanário
“Collier’s” foi criada, em 1906, uma organização, “A Lincoln Farm
Association”, cujo objetivo era o de angariar dinheiro junto de subscritores
para a aquisição do terreno e para o projeto e construção do tal “Memorial”,
como então se chamou ao monumento. Dessa Associação fizeram parte nomes
ilustres, tais como o escritor Mark Twain e o próprio Presidente Theodore
Roosevelt.
Parece que entre 1906
e 1909 a Associação logrou obter 400.000 dólares de 140.000 doadores. Para
incentivar a participação das pessoas de menores posses, qualquer doação entre
25 cêntimos e 25 dólares daria direito a um certificado personalizado, e ainda
hoje existe um “site” onde a lista das doadores e os respetivos certificados
podem ser consultados.
No preciso dia do
centenário, 12 de Fevereiro de 1909, a primeira pedra do monumento foi lançada
pelo Presidente Theodore Roosevelt e dois anos depois, perante 3.000
convidados, o “Lincoln Memorial Building” foi oficialmente inaugurado pelo novo
Presidente William Taft, também ele membro da “Associação”.
O resultado é este
que aqui vos mostro em diversas fotografias: um edifício feito de mármore e
granito com um pórtico de seis colunas estilo dórico, no cimo de uma escadaria
de 56 degraus, um por cada ano de vida que Lincoln tinha à data da sua morte.
Embora mais modesto, este monumento tem algumas semelhanças com aquele que
viria a ser erguido em Washington, treze anos mais tarde.
Encerrada no
interior do edifício foi colocada a cabana de maneira, numa sala com dezasseis
aberturas de janela, uma por cada um dos presidentes dos Estados Unidos
existentes até Lincoln.
Uma atenção especial
foi dada à nascente de água que deu origem ao nome da quinta (Sinking Spring) e
que esteve na origem da decisão da compra do terreno por parte do pai de
Lincoln e que se encontra localizada perto do início da escadaria.
Mas as curiosidades
não se ficam por aqui…
A autenticidade da
cabana de Lincoln, inicialmente aceite sem discussão, sempre suscitou muitas
dúvidas aos verdadeiros especialistas. Em 1949 essas dúvidas foram publicamente
manifestadas num artigo científico assinado por um tal Prof. Roy Hays, mas foi
apenas em 2004 que estudos aprofundados à madeira puderam demonstrar que ela
dataria dos anos 40 do Séc. XIX e que, portanto, nunca poderia ter sido a
cabana onde Lincoln nascera em 1809…
Essa posição
científica foi aceite sem discussão e por isso hoje se chama à dita cabana, que
continua lá fechadinha no interior do edifício, já não a cabana onde Lincoln
nasceu, mas sim a “simbólica cabana onde Lincoln nasceu” (Symbolic Birthplace
Cabin).
Quanto a Koock Creek,
o local onde Lincoln viveu dos 2 aos 8 anos, não foi alvo de um interesse
nacional tão acentuado.
Essa quinta acabaria
por ser comprada em 1928 por um casal, Chester e Hattie Howell Howard, no
intuito de preservar a memória da infância de Lincoln. Colocaram lá uma cabana
idêntica àquela onde Lincoln teria vivido e em 1932 abriram um bonito
restaurante, “Lincoln Tavern”, uma vez que a afluência de visitantes já o
justificava. A quinta manteve-se em poder da Família Howell até 2001, data em
que foi vendida ao Estado de Kentucky, ficando, mais tarde, a fazer parte
integrante do “Abraham Lincoln Birthplace National Historic Site”.
O local é muito
bonito e deixo-vos fotografias disso tudo, incluindo do célebre riacho que,
reza a história, quase ia causando a morte do jovem Lincoln, não fosse um amigo
lhe ter lançado um tronco que o salvou. É da vida nesta quinta que Lincoln tem
as suas primeiras memórias da infância, e terá sido aqui que o futuro
Presidente foi pela primeira vez confrontado com o mau trato infligido
aos escravos que trabalhavam nas imediações.
Quanto a Lincoln, já
se sabe que a sua memória é evocada de tempos a tempos, quando mais
interessa…
Foi-o, por exemplo,
nos tempos do New Deal de Franklyn Roosevelt, quando medidas de fundo foram
lançadas para apoiar os mais desprotegidos da Sociedade, nomeadamente nos
Estados do Sul.
Foi-o, de novo,
durante a II Guerra Mundial, com esse grande apelo que então foi feito à união
de todos os americanos em torno do esforço de guerra.
Foi-o também, e de
que maneira, nos anos violentos da luta dos negros pelos seus Direitos Civis, e
foi noutro Lincoln Memorial que terminou, em Agosto de 1963, a “Marcha sobre
Washington”, tendo sido nessa mesma escadaria que Martin Luther King Jr,
pronunciou o seu célebre discurso “I Have a Dream”.
E volta a evocar-se
também nos dias de hoje, pelas piores razões, quando Trumps já governaram e
novos Trumps estão à espreita para governar, não só na América como um pouco
por todo o Mundo, fazendo com que muito boa gente se recorde do final do curto
discurso de Gettysburg e dê por si a admitir que o tal governo do povo, pelo
povo e para o povo possa vir mesmo a desaparecer, progressivamente, da face da
terra. Se é que, na sua pureza, alguma vez chegou a existir em algum tempo e em
algum lugar…
Quanto à pequena
cidade de Hodgenville, quem passar por ela e não encontrar nenhum carro dos
dias de hoje imaginar-se-á em plenos anos 50… Duas estátuas de Lincoln dominam
a praça central, e depois à volta, como seria de esperar, é tudo Lincoln: o
Banco, o Museu, o restaurante…
Despeço-me, por hoje,
deixando-vos com a cena final de “Young Mister Lincoln”, um dos momentos altos
da Arte de Ford, esse mesmo acerca do qual Eisenstein uma vez disse que de
todos os filmes americanos existentes à sua época era aquele que mais gostaria
de ter feito…
PS:
É óbvio que as
informações mais detalhadas que aqui vos deixo não foram retiradas do livrinho
da minha infância, mas sim deste “Abraham Lincoln: A Living Legacy” que também
vos mostro e que constitui o Guia dos diversos “Abraham Lincoln National Park
Sites”, já que, para além deste, existem mais dois em Indiana e no Illinois.
Colaboração de Luís Miguel Mira
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