1 de Setembro de 1989.
Nina
Simone actuou no Casino Estoril.
Dela dizem
que bebe muito e tem mau feitio. Nina esteve mal, dizem.
Zé
Duarte não viu, mas no seu «Jazzé e Outra Histórias», mostra uma fotografia de Nina Simone e
trata de a ver, rever, interpretar. Chamou-lhe «A Fotografia da Música»:
«Está
sentada.
Como
fundo foi escolhido um misterioso motivo muito simples que se repete muito.
Como
certa música africana.
Há
uma ou duas folhas de planta de clima quente no canto inferior direito.
O
pano que a cobra quase toda não tem botões, nem cinto, nem mangas, embrulha-a
só em diagonal no tronco, revela a área do ombro que nos está mais próximo.
As
tiras estampadas no pano – algodão? – reproduzem flores, plantas.
Como
a Fleurette Indienne de Ellington.
O
cabelo é curto, afro, sempre o usou assim, às vezes com touca de malha justa,
africana.
As
sobrancelhas finas desafiam, até porque a direita subiu mais que a esquerda.
Altiva.
A
câmara, em contra-plongé, ajuda a pose. O que para o caso, é maneira de ser e
estar, mas os olhos não olham para nós, olham de cima para baixo, para a nossa
direita.
Rainha nunca cruza os olhos com os súbditos.
Estrela
tem lux própria.
Há
um brinco só, jóia branca, em forma de quarto crescente pendurado.
Lábios
grossos, sensuais, que guardam a voz igual a eles, educada na igreja, na
secular pregação de textos religiosos musicados.
O
porte é magnífico, dá-o a elegância do pescoço, o aprumo da coluna.
Há
raça e majestade, seriedade e mistério, algum orgulho, talvez provocação
soberba.
Magnetismo.
A
pele, a cor e a pureza de linhas do ombro, peito e quase nada de um seio.
Fera
em repouso.
Pulseira
com medalhas variadas no braço, pulseiras simples nos pulsos.
Nos
tornozelos?
África.
Mãos
grandes descansam nas coxas, dedos compridos e largos, mãos treinadas nas boas
escolas de música de Nova Iorque e Filadélfia, mãos de professora de piano,
mãos de compositora de melodias para letras de notáveis poetas afro-americanos:
Paul Junbar, Langstone Hughes.
«Nova,
Dotada e Negra» - como escreveu Hughes e ela canta.
Tem
56 anos.
As
linhas olíquas em fundo contrariam a verticalidade da impressionante mulher,
destacam a sua imagem de desafio e coragem, símbolo de luta, provas dadas
quando compõe, toca e canta as misérias do racismo, da condição feminina, das
realidades sociais.
Está-se
mesmo a ver, basta olhá-la, que ela não esquece o elogio do Homem, do sexo.
Reportório
variado, entre o Homem e o Deus, das alegorias sexuais aos misticismos desbragados,
incluindo mesmo uma cantiga onde o sotaque do seu francês é saborosíssimo e
outras pobres comerciais antes de por ela terem sido transformadas.
Tão
boa pagã como mística, em concerto provoca sempre e quase numa toada média. Música
e letras entoadas, um estado de sensualidade sugerida que paira e satura o ar.
Chega
a dirigir-se ao público, depende dele.
Um
animal de todos os prazeres.
O
pano que a cobre deve chegar-lhe aos pés, como ela gosta.
O
mistério das pernas sempres ocultas, reverso de Tina, outra fera, mas essa em
permanente ataque, enquanto está em permanente ameaça, portanto muito mais
inquietante.
Sentada
ao piano já dança um pouco, com os ombros, com o tronco, mas quando estica as
pernas e se levanta o bailado tem ainda mais magia, embora contido, denso. Só
um ou outro requebro discreto, dançar só da cintura para cima, movimentos
raros, secos, inesperados sempre em contratempo.
Às
vezes bate palmas, poucas em esquema rítmico difícil.
A
América africana.
A
grande música negra.
Cuidado
quando, logo à noite no Casino, Nina Simone se levantar…»
Numa entrevista ao Expresso, 6 de Fevereiro de 2016 (06.02.2016), por ocasião dos 50
anos dos« Cinco Minutos de Jazz», perguntaram-lhe por um
episódio destes longuíssimos minutos de jazz.
José Duarte lembrou-se de um,
deliciosos mesmo, que, por acaso. mete Nina Simone:
«Fui a uma rádio em Los Angeles, que passa jazz 24 horas por dia. O edifício era lindo, alto, todo em vidro. Era o início dos anos 70, o João ainda era vivo. Eu tinha levado comigo uma cassete da Nina Simone a tocar piano. O apresentador fez-me perguntas, estranhou onde era Portugal, expliquei-lhe que se nadasse sempre em frente chegaria a Lisboa. E quando lhe contei que tinha um programa de cinco minutos fechou o microfone, pensava que eu me tinha enganado no inglês! No fim, pôs a minha cassete da Nina Simone e ia caindo da cadeira: nunca a tinha ouvido só a tocar o piano. Saí daquela rádio orgulhoso.»
Um orgulho tão grande, tão grande que, certamente, na chegada à Portela, obrigaram
o José Duarte a pagar excesso de bagagem.
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