Na véspera do 25 de Abril, finalmente Chico Buarque de
Holanda, recebeu o Prémio Camões que lhe foi concedido em 2019.
Tal como ele muito bem lembrou:
«No que se refere ao meu país, quatro anos de um
governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo
parecia andar para trás. Aquele Governo foi derrotado nas urnas, mas nem por
isso podemos nos distrair, pois a ameaça fascista persiste, no Brasil como um
pouco por toda parte. Hoje, porém, nesta tarde de celebração, reconforta-me
lembrar que o ex-Presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu
Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso
Presidente Lula.»
O discurso de Chico Buarque de Holanda:
«Ao
receber este prémio penso no meu pai, o historiador e sociólogo Sergio Buarque
de Holanda, de quem herdei alguns livros e o amor pela língua portuguesa.
Relembro quantas vezes interrompi seus estudos para lhe submeter meus escritos
juvenis, que ele julgava sem complacência nem excessiva severidade, para em
seguida me indicar leituras que poderiam me valer numa eventual carreira
literária. Mais tarde, quando me bandeei para a música popular, não se
aborreceu, longe disso, pois gostava de samba, tocava um pouco de piano e era
amigo próximo de Vinicius de Moraes, para quem a palavra cantada talvez fosse
simplesmente um jeito mais sensual de falar a nossa língua. Posso imaginar meu
pai coruja ao me ver hoje aqui, se bem que, caso fosse possível nos
encontrarmos neste salão, eu estaria na assistência e ele cá no meu posto, a
receber o Prêmio Camões com muito mais propriedade. Meu pai também contribuiu
para a minha formação política, ele que durante a ditadura do Estado Novo militou
na Esquerda Democrática, futuro Partido Socialista Brasileiro. No fim dos anos
sessenta, retirou-se da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade de São Paulo em solidariedade a colegas cassados pela ditadura
militar. Mais para o fim da vida, participou da fundação do Partido dos
Trabalhadores, sem chegar a ver a restauração democrática no nosso país, nem
muito menos pressupor que um dia cairíamos num fosso sob muitos aspectos mais
profundo.
O meu
pai era paulista, meu avô, pernambucano, o meu bisavô, mineiro, meu tataravô,
baiano. Tenho antepassados negros e indígenas, cujos nomes meus antepassados
brancos trataram de suprimir da história familiar. Como a imensa maioria do
povo brasileiro, trago nas veias sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda
a nos explicar um pouco. Recuando no tempo em busca das minhas origens,
recentemente vim a saber que tive por duodecavós paternos o casal Shemtov ben
Abraham, baptizado como Diogo Pires, e Orovida Fidalgo, oriundos da comunidade
barcelense. A exemplo de tantos cristãos-novos portugueses, sua prole exilou-se
no Nordeste brasileiro do século XVI. Assim, enquanto descendente de judeus
sefarditas perseguidos pela Inquisição, pode ser que algum dia eu também
alcance o direito à cidadania portuguesa a modo de reparação histórica. Já
morei fora do Brasil e não pretendo repetir a experiência, mas é sempre bom
saber que tenho uma porta entreaberta em Portugal, onde mais ou menos sinto-me
em casa e esmero-me nas colocações pronominais. Conheci Lisboa, Coimbra e Porto
em 1966, ao lado de João Cabral de Melo Neto, quando aqui foi encenado seu
poema Morte e Vida Severina com músicas minhas, ele, um poeta consagrado e eu,
um atrevido estudante de arquitectura. O grande João Cabral, primeiro
brasileiro a receber o Prêmio Camões, sabidamente não gostava de música, e não
sei se chegou a folhear algum livro meu.
Escrevi
um primeiro romance, "Estorvo", em 1990, e publicá-lo foi para mim
como me arriscar novamente no escritório do meu pai em busca de sua aprovação.
Contei dessa vez com padrinhos como Rubem Fonseca, Raduan Nassar e José
Saramago, hoje meus colegas de Prêmio Camões. De vários autores aqui premiados
fui amigo, e de outras e outros – do Brasil, de Portugal, Angola, Moçambique e
Cabo Verde - sou leitor e admirador. Mas por mais que eu leia e fale de
literatura, por mais que eu publique romances e contos, por mais que eu receba
prêmios literários, faço gosto em ser reconhecido no Brasil como compositor
popular e, em Portugal, como o gajo que um dia pediu que lhe mandassem um cravo
e um cheirinho de alecrim.
Valeu
a pena esperar por esta cerimônia, marcada não por acaso para a véspera do dia
em os portugueses descem a Avenida da Liberdade a festejar a Revolução dos
Cravos. Lá se vão quatro anos que meu prêmio foi anunciado e eu já me
perguntava se me haviam esquecido, ou, quem sabe, se prêmios também são
perecíveis, têm prazo de validade. Quatro anos, com uma pandemia no meio, davam
às vezes a impressão de que um tempo bem mais longo havia transcorrido. No que
se refere ao meu país, quatro anos de um governo funesto duraram uma
eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás. Aquele
Governo foi derrotado nas urnas, mas nem por isso podemos nos distrair, pois a
ameaça fascista persiste, no Brasil como um pouco por toda parte. Hoje, porém,
nesta tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-Presidente teve a
rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em
branco para a assinatura do nosso Presidente Lula. Recebo este prêmio menos
como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores e artistas
brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e
obscurantismo.
Muito
obrigado.»
Legenda: imagem do Público
3 comentários:
Tal como a Bob Dylan, o Nobel ficava-lhe tão bem.
Ó Sammy permita -me discordar: o Nobel da Literatura atribuído ao Bob Dylan foi (para mim) uma aberração, que não compreendo (apesar da minha ignorância sobre a obra literária do Dylan que, no entanto, me parece não possuir).
E quanto ao Chico Buarque-que obra literária possui? dois ou três livros (quiçá menores).
O Prémio Nobel nunca me interessou.
Estão por lá excelentes escritores mas o resto serão autores que nunca li e outros que li, e não me entusiasmaram. Vivamente rejubilei - e deixemos o patriotismo de lado que é chão que não piso – quando atribuíram o Nobel a José Saramago.
Terei que dizer que considero que Chico Buarque de Holanda escreveu belíssimas e importantes canções. Bob Dylan, um genial cabotino como muitos lhe chamam, tem canções que marcam um tempo, marcam vidas. Serão casos para Nobel? Talvez não, mas isso é sempre assunto que dá pano para enormes mangas.
Abraço
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