O meu pai
tinha Lisboa dentro dele.
Como
Marilyn Monroe, espantava-se com os que diziam que as noites são para os
sonhos. Servem para sonhos, mas para muito mais.
Trabalhava
noite dentro, o fecho do jornal, quem saberá hoje o que isso é, jogatanas de
poker, que abandonou quando nasci, ceias com os camaradas do jornal, amigas com
quem bebia aguardente Ferreirinha ao balcão de um qualquer ao bar, sapatos de
tiras e pões, conversas sem fim.
Quando para o meu pai gravei em cassettes as canções de que ele muito gostava, o aviso
de que teria de lá estar a «Amélia dos Olhos Doces», foi dos primeiros avisos
para que não houvesse esse esquecimento.
Amélia dos Olhos Doces
quem é que te trouxe
grávida de esperança?
Um gosto de flor na boca.
Na pele e na roupa
perfumes de França.
Cabelos cor de viúva.
Cabelos de chuva.
Sapatos de tiras
e pões, quantas vezes
não queres e não amas
os homens que dormem
contigo na cam.
Amélia dos Olhos Doces
Quem dera que fosses
apenas mulher.
Amélia dos Olhos Doces
se ao menos tivesses
direito a viver!
Amélia gaivota
amante ou poeta.
Rosa de café.
Amélia gaiata
Do Bairro da Lata.
Do Cais do Sodré.
Tens um nome de navio.
Teu corpo é um rio
onde a sede corre.
Olhos Dcoces. Quem diria
que o amor nascia
onde Amélia morre?
Cabelos cor de viúva.
Cabelos de chuva.
Sapatos de tiras
e pões, quantas vezes
não queres e não amas
os homens que dormem
contigo na cama.
O pai do Carlos Mendes, foi meu pediatra. Militante comunista, Abílio Mendes de seu nome, consultório num 1º andar na Travessa do Calado, teve vários e sérios problemas com a ditadura de Salazar. Muitas vezes telefonavam do consultório a dizer que o Sr. Doutor, por estar em viagem, teria que remarcar a consulta para um outro dia. As viagens ocorriam para os calabouços pidescos.
Esta música de sábado lembra também Joaquim Pessoa que há uns dias partiu para onde as nuvens da sua infância sobrevivem, e os velhos desejos nunca se apagam.
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