sábado, 15 de abril de 2023

MÚSICA PELA MANHÃ


Estamos com o livro de Armando Silva Carvalho «Sentimento de um Acidental», editado em 1981.

O capítulo chama-se «Isto faz-me Impressão» e o autor apresta-se a esclarecer:

«Isto faz-me impressão» - desabafo de Amália Rodrigues ao verificar que estavam a gravar uma actuação sua no Café Luso, há muitos anos.

Que isto seja entendido como reconhecimento a uma Voz que nunca me largou na vida.»

Existem!

São aqueles de que gosto muito e por isso cito «Com Que Voz» de Amália Rodrigues, gravado em Janeiro de 1969, um disco perfeito.

A criteriosa escolha dos poemas que Amália canta, a música de Alain Oulman.

Mas está por lá um poema que marca toda uma diferença.

Chama-se «Gaivota» e tem autoria de Alexandre O’ Neill.

Para contar histórias sobre a canção, sirvo-me do livro de Maria Antónia Oliveira, «Alexandre O’ Neill – Uma Biografia Literária».

O’ Neill embirrava com o fado.

Alain Oulman tinha uma música para a qual precisava de uma letra, a música era muito bonita e tentou convencer o poeta a escrever, mas O’ Neill não queria, tão pouco abominava o fado - «a desgraça atávica deste país» - e nem sequer queria conhecer Amália.

José Fonseca e Costa, no livro da Maria Antónia Oliveira, conta:

«Um dia o Alain tocou para nós uma música que o atormentava, estranha música era essa, bela e profunda, toda feita de altos e baixos, como as ondas do mar ou o voo das aves, com notas que nos entravam na alma e ficavam cá dentro a vibrar. Disse, depois de fechar o piano, que não descobrira nem verso de letrista de fados nem poema de grande poeta que coubesse naquela tão estranha, tão enigmática e tão bela música. Perguntou ao Alexandre, provocador, se não seria capz de escrever um poema por ela inspirado e medido e, por uma vez, o Alexandre ficou calado, como se não tivesse ouvido o desafio. Fechou-se naquele sorriso sarcástico que ostentava sempre, aquele com que sorria “à morte com meia cara”.»

A letra de Gaivota começou a ser pensada naquele mesma tarde de Novembro, de volta de umas castanhas assadas e da água-pé, no Martinho da Arcada.

Se uma gaivota viesse
Trazer-me o céu de Lisboa
No desenho que fizesse

Nesse céu onde o olhar
É uma asa que não voa
Esmorece e cai no mar

Que perfeito coração
No meu peito bateria
Meu amor na tua mão
Nessa mão onde cabia
Perfeito o meu coração

Se um português marinheiro
Dos sete mares andarilho
Fosse quem sabe o primeiro

A contar-me o que inventasse
Se um olhar de novo brilho
Ao meu olhar se enlaçasse

Que perfeito coração
No meu peito bateria
Meu amor na tua mão
Nessa mão onde cabia
Perfeito o meu coração

Se ao dizer adeus à vida
As aves todas do céu
Me dessem na despedida

O teu olhar derradeiro
Esse olhar que era só teu
Amor que foste o primeiro

Que perfeito coração
Morreria no meu peito
Meu amor na tua mão
Nessa mão onde perfeito
Bateu o meu coração

Meu amor
Na tua mão
Nessa mão onde perfeito
Bateu o meu coração

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