Nos dias que correm, apenas circunstâncias, substancialmente especiais, me levam a sair de casa para ir comer a um restaurante.
Mas por uma tarde dos idos de Março, deu para desafiar Dom Pepe e Dona Aida, para irmos comer um cosido à portuguesa à Gina, o último restaurante, dos que em tempos existiram no Parque Mayer.
Pois é! Preferível tinha sido estar quietinho-da-silva, ou descer ao Beira-Gare para umas bifanas e uns penaltis de tinto.
O cosido apresentou-se como vulgar de lineu, e a conta só não caíu na exorbitância, que a casa pratica, porque Don Pepe é um velho frequentador e aconteceu uma atençãozinha.
Mas o pior de tudo foi, mesmo em frente ao restaurante da Gina, olhar a degradação a que deixaram que o Capitólio chegasse.
Um abandono inqualificável. Um montão de destroços indescritível.
Aquilo que, parcialmente, podem ver nas fotografias tiradas nessa tarde de Março.
Como foi possível?
O Capitólio abriu ao público em 11 de Julho de 1931, aliciante e arrojado projecto do arquitecto Luís Cristino Silva.
Estou em crer, a minha memória já conheceu melhores dias, que foi no Capitólio que vi, aí pelos 7/8 anos, o Pinoquio do Walt Disney.
Outros filmes por lá vi, mas não ficaram registos.
A última vez que estive no Capitólio, essa sim, tem um outro registo, com data certa e tudo: 17 de Maio de 1967.
Foi a tarde em que esse equivoco que dá pelo nome de Eugénio Evtuchenko, veio a revelar-se um mero vendedor-de-banha-da-cobra, deu um recital de poesia, traduzida directamente do russo por J. Seabra-Dinis, com a colaboração de Fernando Assis Pacheco para a versão poética final, que, também, leu em português, os poemas que, antes, Evtuchenko recitara.
Recordo-me de o meu pai contar que, nos finais dos anos 60, assistiu no Capitólio à representação de A Alma Boa de Sé-Chuão de Bertolt Brecht, pela Companhia de Maria Della Costa, em que metade da assistência era composta por agentes da PIDE e legionários, que no final desataram a patear, mas foram engolidos pela ovação que ecoou pela sala, entremeada com Vivas à Liberdade e à Democracia.
O meu pai aproveitava para recordar as sessões no Politeama, Maio de 1945, com o Casablanca que esteve dez semanas em exibição, e, convoco João Bénard da Costa, para dos Filmes da Minha Vida adiantar mais qualquer coisinha:
Só de ouvido conheço as histórias que se passaram no Politeama, com o público a levantar-se para ouvir a Marselhesa abafar o Die Wacht am Rhein, como se diz que um rei de Inglaterra se levantou para ouvir o “Aleluia” do Messias de Haendel.
O Parque Mayer foi percurso rotineiro dos domingos da malta da rua.
Descer do alto da Penha de França, palmilhar até ao Parque, só para irmos olhar as pessoas, os cafés, os cartazes dos teatros, as entradas e saídas das matinés das revistas, o remanso daqueles cinzentos domingos, exacta medida do nosso provincianismo.
Mais tarde haveria de ler num poema de Armando Silva Carvalho: Domingo é um bom dia para se olhar a tristeza.
Lembro-me que havia um alfarrabista à direita, logo que se entrava no parque, onde comprávamos aqueles livros distribuídos pela Agéncia Portuguesa de Revistas que metiam histórias do FBI e outras cowboyadas e que, juntamente com Salgaris, Walter Scotts, Júlios Verne, ajudaram, alguns de nós, a criar hábitos de leitura.
Nesse alfarrabista, uns anos mais à frente, comprei, por tuta e meia, uma mão cheia de Almanaques, mais tarde emprestados ao Carlos Alberto.
A Almanaque foi uma revista mensal, o primeiro número saíu em Outubro de 1959, o último em Maio de 1961, e tinha como chefe de redacção José Cardoso Pires (A minha ideia era fazer uma revista que não respeitasse ninguém e fosse o mais sacana possível), que, entre whiskadas e cigarradas, dirigia uma equipa composta por Alexandre O’Neill, Luís Sttau Monteiro, Augusto Abelaira, José Cutileiro, Baptista-Bastos, Vasco Pulido Valente, com grafismo de Sebastião Rodrigues, mais tarde de João Abel Manta.
Não mais tive notícias do Carlos Alberto e, naturalmente, dos Almanaques também não.
Com o 25 de Abril, a decadência lenta do Parque Mayer arrastou o Capitólio para a exibição de filmes pornográficos, também por lá funcionou uma discoteca, mas, nem sequer dava pró tabaco, e acabou por fechar as portas e ficar ao abandono.
Em 1993 o Capitólio foi declarado imóvel de interesse público mas, como tantas vezes acontece, a classificação mais não é que um diploma para pendurar na parede, porque nada acontece.
Durante o consulado de Pedro Santana Lopes, como presidente da Câmara de Lisboa, ocorreu aquele estranho negócio com a Bragaparques: a Câmara cedia os terrenos da antiga Feira Popular, em Entrecampos, a empresa cedia o Parque Mayer e mais 60 milhões de euros.
Tudo aquilo cheirava a esturro, a autêntico caso de polícia.
Mas, com pompa e circunstância, foi anunciada a recuperação do Parque Mayer, um megalómano projecto, para o qual foi convocado o arquitecto Frank Gehry, que se passeou pelo Parque, comeu e bebeu do fino, e fez-se pagar bem por uns rabiscos que desenhou.
Tudo acabou por ficar em águas de bacalhau.
Pelo meio, mais uma mão cheia de parasitas, também encheu os bolsos e, quem tudo pagou, desgraçadamente, foi a rapaziada do costume.
Tout va três bien, madame La Marquise!
Em Setembro de 2009, a Câmara Municipal de Lisboa, presidida por António Costa, anunciou para o Capitólio, uma recuperação do edifício que se transformaria num espaço cultural dedicado ao teatro e cinema, além de um prolongamento do Jardim Botânico e Museu de História Natural.
Por unanimidade a Câmara, também, aprovou que o Capitólio se passasse a chamar Teatro Raul Solando.
Sem querer ofender ninguém, e colocando de lado os inquestionáveis méritos de Raul Solnado, considero a decisão um perfeito disparate.
O arqueitecto Alberto Souza Oliveira foi indicado para o estudo e projecto da reabilitação do edifício. Colocaram-se uns tapumes, aconteceram umas obras, mas de repente tudo parou.
Chamada a apresentar qualquer explicação para a paragem das obras, a Câmara nada adiantou, mas nos bastidores sabia-se que a paragem das obras tinha a ver com o imbróglio jurídico que envolvia a permuta dos terrenos.
No dia 4 deste Abril, ficou a saber-se que, por decisão do Tribunal Central Administrativo, foi anulado o negócio que, há sete anos, envolveu a Câmara e a Bragaparques.
Assim sendo a Câmara Municipal de Lisboa perdeu a posse do Parque Mayer, volta a ficar com os terrenos de Entrecampos e terá que devolver o dinheiro à Bragaparques.
Confusos?
Então, fiquem a saber que o Público do dia 10, noticiava que, apesar da incerteza sobre quem é o dono do Parque Mayer, as obras de recuperação do Capitólio deverão ser retomadas, após uma paragem de um ano e nove meses, ainda no decorrer deste mês.
Não é difícil de concluir que a recuperação do Capitólio ficará para as calendas.
Quanto trabalho? Quanto dinheiro enterrado?
Como dizem os alentejanos: este país dá-me cá umas fezes!...
Legenda: a fotografia de Evtuchenko é retirada de Ievtuchenko em Lisboa, Poemas do Recital, Publicações Dom Quixote, Lisboa 1967.Também se podem ver Fernando Assis Pacheco e J. Seabra-Dinis.
2 comentários:
Belo texto, Mestre Sammy, o meu Pai lembra-se de que era no Capitólio que passavam os filmes do Elvis, e outros rockers. Eu já só me lembro de lá ir a uma Discoteca onde se andava de patins...
Como digo, tirando o Pinóquio não consegigo lembrar qualquer outro filme que tenha visto no Capitólio, até porque não era das salas de cinema que mais frequentava.
De certeza sei que não foi um filme do Elvis, porque nunca vi nenhum. Aliás, tirando umas duas dúzias de canções, o “Rei” diz-me pouco. Pode ser um outro disparate mas sempre fui mais Paul Anka. Como, por outro lado, fui mais Stones e Moody Blues do que Beatles.
Dessa discoteca em patins apenas ouvi falar.
Em que ano é que isso foi?
De certeza que tens pormenores para contar.
Que venham eles!...
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