Esta foi a escolha, para o dia 21 de Abril de 1974, que Eduardo Guerra Carneiro fez para os leitores do Cinéfilo.
O grande destaque do nr. 29 de revista Cinéfilo, recai na entrevista, a propósito da estreia da média-metragem Jaime, que João César Monteiro faz a António Reis.
O texto de apresentação de entrevista é, simplesmente, uma prosa memorável.
João César Monteiro não esconde nada, e fica como prova - mais uma! - da excelência da sua brilhante, como genial, faceta de escritor, coisa que ele não gostava nada que se dissesse.
Este é o texto de apresentação da entrevista: “Jaime” de António Reis: o inesperado no Cinema Português:
Tudo começou um pouco antes do Natal. O Fernando Lopes encomendou-me uma reportagem sobre um tipo que acabara um filme chamado Jaime, e é natural, tudo o indica, que eu tenha pensado o que qualquer português que se preza pensaria em idênticas circunstâncias: outra estopada para eu, qual pequeno, vil Tartufo, exercitar a gentileza.
Conhecem o dom dos derviches? Eu, o que se alimenta da própria e da cegueira alheia, não. O da conjectura, sim. Assim: um tipo, pobre diabo, é internado num hospício, enfiam-lhe (terapêutica ocupacional, dizem) umas tintas e um pincel nas unhas e, anualmente, com o velado epíteto de «arte de louco», expõem-lhe os trabalhos, promovem tômbolas, o que, para além de prestigiar o estabelecimento e fazer jus aos mais modernos tratamentos (de choque) que por lá se gastam, serve também para que uns magros patacos revertam em benefício do internado indigente: cigarritos, fardinha, alpargatas novas – doces caracóis da caridade. De Jaime, portanto, eu sabia o que se sabia para que, como nos contos de fadas, a surpresa pudesse ser total e milagrosa: um filme sobre a «pintura» de um tipo que, durante muito tempo viveu num hospício e por lá se finou.
É evidente que um assunto destes dá para tudo, sobretudo para especulações de feirantes, dificilmente para um filme com um mínimo de interesse, mais dificilmente ainda, em esta sucessão de rarefacções, para um grande filme. Entenda-se: um filme em que a severa vigilância ética nunca se separa da permanente invenção estética e, por via da feroz manutenção desse disciplinado equilíbrio, que não é só o da obstinação mas também, e sobretudo, o desse pleno voo da inteligência a que se dá o nome de capacidade poética, projecta, no espaço que é da história, o corpo, da sua própria vidência, feita de um novo furor e mistério.
E que sabia eu de António Reis? Que escrevera os diálogos de, já tão longínquo, Mudar de Vida, de Paulo Rocha? Que publicara dois (ou mais?) livros de poemas (Poemas Quotidianos e Novos Poemas Quotidianos) que nunca li? Que nasceu no Porto e por lá viveu até há pouco, o que, ainda por cima, não era, antes pelo contrário, nenhuma recomendação especial, sabido como é que o Porto já deu o cineasta que tinha a dar e, como se isso não fosse já bastante, houve ainda que honrá-lo como instituição cinematográfica à lusa escala?
É certo que, na fria tarde de Dezembro em que me dirigi para a sala de projecção da Tóbis, fui recebido pela mais cândida e afável criatura que deve existir sobre a face deste taciturno planeta, mas só me dei conta da exacta dimensão dessas qualidades (e digo isto com o pressentimento de quão terríveis devem ser as manifestações do seu avesso), após ter visto o filme, como se o filme fosse afinal o único revelador possível e sem equívoco dessa tão veemente e natural explosão de humana grandeza.
Estou a falar de António Reis e do dia em que o conheci e que, por acaso profissional, coincidiu com a primeira vez que vi Jaime, quanto a mim, um dos mais belos filmes da história do cinema, ou, se preferem: uma etapa decisiva e original do cinema moderno, obrigatório ponto de passagem para quem, neste ou noutro país, quiser continuar a prática de um certo cinema, o cinema que só tolera e reconhece a sua própria austera e radical intransigência.
Neste sentido, creio que, numa altura em que os dados do cinema português estão a ser, se o não foram já, jogados, o surgimento de António Reis pode ser fundamental, tão fundamental como o enxerto de um coração novo num enfermo agonizante.
De facto, num meio mais do que minado por factores corruptos e já quase sem defesas contra a invasão imunda da rataria oportunista, António Reis pode, por um lado, pontuar exemplarmente a altitude moral a que nos obriga a nossa responsabilidade de cineastas e, por outro, suscitar um tipo de reflexão e discussão que torne algum cinema português mais próximo de formas de cultura de expressão genuína, e nascidas do duro conflito capaz de as desvincular de pesadas e sufocantes heranças ideológicas, o que nada tem a ver, Deus me livre, com o chavão muito em voga, e que não significa nada que sentido faça, de que «são precisos filmes que falem da realidade portuguesa».
Não é fácil, todos nós o sabemos, mas se assim não for, e, parafraseando o que Reis diz, algures, na entrevista que se segue, é preferível que chovam raios e coriscos e desabe uma porcela que tudo leve.
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