A pergunta que todas elas, secretamente, se colocavam era: será
que ele ainda se lembra de mim…?
Que se lembrava de todas era evidente, pelas lembranças que nunca
se esquecia de lhes enviar dos quatro cantos do Mundo por ocasião dos
seus aniversários e do Natal…
Mas o que elas queriam dizer era: será que ele ainda se lembrava
de como lhe ensinavam a rezar e lhe cantavam uma canção de embalar antes de
adormecer…? De como lhe passavam, suavemente, pomada pelo peito, ao
deitar, quando havia uma ameaça de doença…? Lembrar-se-ia ele da
primeira vez que fora à escola e do lindo bibe que levava vestido…? De como
estava bonito na primeira vez que cantou no coro da igreja…?
E do carinho e do amor…?
Será que ele ainda se lembrava do carinho e do amor que lhe dedicavam,
procurando assim colmatar, em quadruplicado, o carinho e o amor que a sua pobre
mãe, que não resistira ao parto, já não tinha ido a tempo de lhe dar…?
Aquele postal recebido há poucas semanas mudara por completo a sua
pacífica existência. O barco atracaria no porto da aldeia durante algumas horas
para reabastecimentos e elas iriam tê-lo de novo a seu lado.
Com uma alegria juvenil que há muito não se lembravam de sentir
limparam completamente a casa, já de si sempre asseada… Enceraram o
soalho e os móveis, limparam os tapetes, mudaram os cortinados, puseram
flores em todos as jarras. Para o quarto dele, quase sempre
fechado, tricotaram uma colcha nova e uma grande almofada para a cabeceira da
cama, com o seu nome bordado.
Todas elas se lembravam como se fosse hoje daquele fim de tarde em que
ele lhes confessara que o mar chamava por ele, e que tinha de partir. Quando
subia ao monte para ver os barcos desaparecer no horizonte o seu coração batia
com mais força e a sua cabeça enchia-se de sonhos de lugares distantes e de
paraísos perdidos que esperavam por ele…
Custasse o que custasse, teria mesmo de partir…
E partiu, deixando-as num mar de lágrimas.
Depois chegavam postais de lugares longínquos, a maioria dos quais
nunca tinham sequer ouvido falar. De quando em vez uma carta com meia dúzia de
frases de circunstância que as deixavam loucas de satisfação e que liam, à vez,
durante noites a fio.
As lembranças que invariavelmente recebiam pelos anos e pelo Natal eram
cuidadosamente colocadas numa estante no canto da sala que, assim cheia, era
como que uma espécie de altar que tivessem erguido em memória do seu menino.
Mas agora, aquele último postal tinha-lhes trazido a boa notícia que
tanto aguardavam.
Agora, ao fim de tantos anos, iriam tê-lo por uma noite…
Uma só noite ao fim de tantos anos…
Mas certamente que iriam fazer durar essa noite…
Depois de lhe servirem a sopa da terra, as costeletas de borrego e o
pudim de ovos de que tantas saudades dizia ter, subiriam com ele até ao
quarto para o deixarem descansar, dar-lhe-iam um beijo e um abraço de despedida
e ficariam ali, todas juntas, de vigilância à porta do quarto. Quando
tivessem a certeza de que já estaria em sono profundo, entrariam de mansinho
com um candelabro na mão e ficariam ali sentadas aos pés da cama, a vê-lo
dormir pela noite fora. E talvez que alguma delas tivesse coragem para
lhe passar os dedos pelos cabelo e lhe dar um beijo na testa, como no
antigamente…
O dia amanhecera bonito e haviam posto o melhor dos seus
vestido, o avental e a touca, como nos dias de festa.
Embora tivessem passado a boa nova e houvesse muitos amigos no porto à
sua espera, elas queriam ser as primeiras a vislumbrar o barco no fio do
horizonte. As primeiras a vê-lo, a acenar-lhe os braços, a enviar-lhe beijos…
Muito mais cedo do que seria necessário subiram o monte e instalaram-se
à sua espera, os quatro corações a baterem de ansiedade e de uma alegria
esfusiante.
Mas será que ele ainda se lembrava…?
Texto e imagem de Luís Miguel Mira
Legenda: fotografia tirada em Point Clark, Ontário, Canadá
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