sexta-feira, 10 de outubro de 2014

AS QUATRO MÃES


A pergunta que todas elas, secretamente, se colocavam era:  será que ele ainda se lembra de mim…?

Que se lembrava de todas  era evidente, pelas lembranças que nunca se esquecia de lhes enviar dos quatro cantos do Mundo por ocasião dos  seus  aniversários e do Natal…

Mas o que elas queriam dizer era:  será que ele ainda se lembrava de como lhe ensinavam a rezar e lhe cantavam uma canção de embalar antes de adormecer…? De como lhe passavam, suavemente, pomada pelo peito, ao deitar,  quando havia uma ameaça de doença…?  Lembrar-se-ia ele da primeira vez que fora à escola e do lindo bibe que levava vestido…? De como estava bonito na primeira vez que cantou no coro da igreja…?

E do carinho e do amor…?

Será que ele ainda se lembrava do carinho e do amor que lhe dedicavam, procurando assim colmatar, em quadruplicado, o carinho e o amor que a sua pobre mãe, que não resistira ao parto,  já não tinha ido a tempo de lhe dar…?

Aquele postal recebido há poucas semanas mudara por completo a sua pacífica existência. O barco atracaria no porto da aldeia durante algumas horas para reabastecimentos e elas iriam tê-lo de novo a seu lado.

Com uma alegria juvenil que há muito não se lembravam de sentir limparam completamente a casa,  já de si sempre asseada… Enceraram o soalho e os móveis, limparam os tapetes,  mudaram os cortinados, puseram flores em todos as jarras.  Para o quarto dele, quase  sempre fechado, tricotaram uma colcha nova e uma grande almofada para a cabeceira da cama, com o seu nome bordado.

Todas elas se lembravam como se fosse hoje daquele fim de tarde em que ele lhes confessara que o mar chamava por ele, e que tinha de partir. Quando subia ao monte para ver os barcos desaparecer no horizonte o seu coração batia com mais força e a sua cabeça enchia-se de sonhos de lugares distantes e de paraísos perdidos que esperavam por ele…

Custasse o que custasse, teria mesmo de partir…

E partiu, deixando-as num mar de lágrimas.

Depois chegavam postais de lugares longínquos, a maioria dos quais nunca tinham sequer ouvido falar. De quando em vez uma carta com meia dúzia de frases de circunstância que as deixavam loucas de satisfação e que liam, à vez, durante noites a fio.

As lembranças que invariavelmente recebiam pelos anos e pelo Natal eram cuidadosamente colocadas numa estante no canto da sala que, assim cheia, era como que uma espécie de altar que tivessem erguido em memória do seu menino.

Mas agora, aquele último postal tinha-lhes trazido a boa notícia que tanto aguardavam.

Agora, ao fim de tantos anos, iriam tê-lo por uma noite…

Uma só noite ao fim de tantos anos…

Mas certamente que iriam fazer durar essa noite…

Depois de lhe servirem a sopa da terra, as costeletas de borrego e o pudim de ovos de que tantas saudades dizia ter,  subiriam com ele até ao quarto para o deixarem descansar, dar-lhe-iam um beijo e um abraço de despedida e ficariam ali, todas juntas, de vigilância  à porta do quarto. Quando tivessem a certeza de que já estaria em sono profundo, entrariam de mansinho com um candelabro na mão e ficariam ali sentadas aos pés da cama, a vê-lo dormir pela noite fora. E talvez que alguma delas tivesse coragem para  lhe passar os dedos pelos cabelo e lhe dar um beijo na testa, como no antigamente…

O dia  amanhecera  bonito e haviam posto o melhor dos seus vestido, o avental e a touca, como nos dias de festa.

Embora tivessem passado a boa nova e houvesse muitos amigos no porto à sua espera, elas queriam ser as primeiras a vislumbrar o barco no fio do horizonte. As primeiras a vê-lo, a acenar-lhe os braços, a enviar-lhe beijos…

Muito mais cedo do que seria necessário subiram o monte e instalaram-se à sua espera, os quatro corações a baterem  de ansiedade e de uma alegria esfusiante.       

Mas será que ele ainda se lembrava…?


Texto e imagem de Luís Miguel Mira

Legenda: fotografia tirada em Point Clark, Ontário, Canadá

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