terça-feira, 14 de outubro de 2014

O ÂMAGO DA MÚSICA


O que eu procurava era o âmago da música – a expressão. Não teria havido jazz se não fossem os blues e não teria havido blues sem escravatura; essa versão particular e mais recente de escravatura, diferente daquela que nós, pobres celtas, tivemos de sofrer às mãos do império romano. Os poderosos sempre sujeitaram povos inteiros à miséria, não apenas na América. Mas quem sobrevive à escravatura produz algo de primordial. Algo que não vem da cabeça, vem das entranhas. Algo que está para lá da sua própria musicalidade; esta pode assumir as formas mais diversas. Há imensos tipos de blues. Há tipos de blues muito leves, há tipo de blues mais pesados, pantanosos. É nos pantanosos que eu me situo. Ouçam o John Lee Hocker. Toca de um modo muito arcaico. As mais das vezes ignora a progressão harmónica, que é sugerida, mas não tocada de modo explicito. Os músicos que tocam com ele podem segui-la; ele não, fica onde está, inamovível. Implacável. Outra coisa crucial no John Lee Hocker, fora aquela grande voz e a implacável guitarra, era o seu bater de pé, que fazia lembrar o rastejar de uma boa. Ampliava o som da batida com uma caixa chinesa, cinco centímetros por dez.


Keith Richards em Life.

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