terça-feira, 2 de dezembro de 2014

OLHAR AS CAPAS


O Dia dos Prodígios

Lídia Jorge
Publicações Europa-América, Lisboa, Março de 1980

- Uma manhã. Oh, já o meu avô desse meu avô não saía a lavrar, nem a ver lavrar. E já a sua mulher dormia o grande sono.
Apareceu por aqui um soldado muito garbosos, de grandes bigodes, caindo de lado, assim como uma folha de parreira. Mais do que assim. Na cabeça um chapéu de penacho enfiado, e a dizer que vinha buscar o meu avô, Calcula, Esperancinha. Para ser julgado e castigado, porque tinha fundado uma povoação sem alvará real. Sem al va rá. Sabes o que fez o meu avô, Esperancinha? Quando percebeu que o soldado do cavalo vinha pedir contas por coisas passadas quarenta nos atrás? Olha Esperancinha. Alevantou-se da cadeira, assim, e disse que nunca tinha visto semelhante rei nas redondezas, e a existir, que nunca lhe tinha dado nada. Antes tirado. Dar? Nem a pontinha de um corno. Por isso, que se era rei, que reinasse na terra onde morava. Esse meu passado deveria ter sido o maior de toda a geração. Disse que ele próprio só tinha voz activa sobre as coisas e os lugares mantidos pela cavação dos seus braços. E dos bracinhos da sua gente. Vê tu. Oh Esperancinha.

Sem comentários: