Uns
trastes voltarão a bolsar:
«Ela fez dele, que era um labrego, um
senhor. Se não fosse a Isabel, quem seria o Saramago, que nem sabia comer à
mesa?»
Deixá-los
ladrar!
Recorde-se
dois textos por aqui publicados:
Um
no dia 27 de Junho de 2015:
«As
paixões acontecem, não se explicam.
Jorge
Amado no seu livro memorialista, Navegação de Cabotagem:
«As
reedições de meus livros saem iguais às primeiras, apenas as gralhas vão em
constante aumento, Paloma, que os andou relendo para saber o que os personagens
comem, me informa que os erros gráficos se contam aos milhares. Tampouco jamais
buli nas dedicatórias, também elas datadas – mesmo em se tratando de pessoas a
quem deixei de estimar nem assim lhes retirei o nome da oferenda mesmo se
retirei o indivíduo do meu bem-querer. Refiro-me, é claro, às edições
brasileiras, as traduções fogem ao meu controlo. Lá estão os nomes todos, um a
um – quando escrevi o livro estimava os admirava fulano a quem o dediquei, se
depois ele se revelou calhorda, o nome permanece na dedicatória datando a
escrita e a ingenuidade do autor.»
José
Saramago não teve este entendimento.
Desde
que conheceu Pilar, as novas edições dos livros, antes dedicados a Isabel da
Nóbrega, passam a não ter essa indicação.
Num
lamento, Isabel da Nóbrega disse que foi uma atitude que não era preciso tomar.
Segundo
o jornalista Luís Leal Miranda (jornal I
de 26 de Junho de 2010), Saramago pronunciou-se por várias vezes sobre o
assunto, garantindo que as dedicatórias fizeram sentido na altura em que essas
edições foram publicadas. E essas edições, já esgotadas, permanecem em sintonia
com as inclinações amorosas da altura.
Num
outro registo, Saramago salientou que as dedicatórias permanecem nas edições
correspondentes ao tempo em que os livros foram escritos.
A história é conhecida.
Depois
de ler livros de José Saramago, principalmente O Ano da Morte de Ricardo Reis,
a jornalista espanhola Maria del Pilar ficou como que encantada.
«Senti
que tinha de agradecer ao autor os livros que me tinha dado a ler. E sobretudo
dizer que tinha tratado os seus leitores como seres inteligentes. Tinha-me
sentido respeitada como leitora e quis agradecer-lhe.»
Veio
até Lisboa e conseguiu uma conversa com Saramago.
Tal
como na sinfonia de Beethoven, ambos terão sentido o destino a bater-lhes à
porta.
Sabe-se
o que aconteceu.
Desde
então, os livros de José Saramago deixaram de ser dedicados à Isabel para
passarem a ser dedicados a Pilar.
Os
dois primeiros livros de José Saramago, Terra
do Pecado (1947), Os Poemas Possíveis
(1966), não têm qualquer dedicatória.
Mas
em Provàvelmente Alegria já se revela
uma leve indicação do que serão as dedicatórias futuras:
«Para
tão grande amor tão curta a vida.»
Cheguei
tarde ao encontro deste verso,
Outro
o escreveu por mim, mas dele tomo,
Como
rosa colhida que te ofereço.
Em
Deste Mundo e do Outro (1971), algo
um pouco mais especifico:
Não
se dirá aqui o nome. Mas da sua exaltação nasceu este poema, do seu rigor esta
autobiografia, da sua verdade esta meditação e basta.
Mas
é com o livro seguinte, A Bagagem do
Viajante (1973) que o nome finalmente surge e que, por diversos livros,
José Saramago manterá:
Dir-se-á
desta vez aqui o nome. Pelas mesmas razões da exaltação, do seu rigor e da sua
verdade. E porque estes dias são mais exaltantes ainda, mais rigorosos e de uma
verdade que já é unidade inultrapassável. Isabel.
Seguem-se:
As
Opiniões que o DL Teve
(1974):
Para a Isabel e para os meus amigos.
O Ano de 1993 (1975):
Para
a Isabel. Este livro, o antes e o depois dele, todos os passos e todos os
gestos, todas as palavras ditas e as que estão por dizer. Assim. Mesmo que o
tempo não entenda já de coisas como esta.
Os
Apontamentos
(1976):
À
Isabel, este livro e todos.
Aos
trabalhadores do «Diário de Notícias» que foram o meu apoio e a primeira
justificação de quanto escrevi.
Manual
de Pintura e Caligrafia
(1976):
Para a Isabel, tão inseparável deste livro como da minha vida.
Objecto
Quase
(1977):
Para a Isabel, porque me disse de que lado está a vida.
A
Noite
(1979)
À Luzia Maria Martins, que me achou capaz de escrever esta peça.
À
Isabel
Levantado
do Chão
(1980):
À
Isabel sempre.
A
João Domingos Serra e João Besuga, e também a Mariana Amália Besuga, Elvira
Besuga, Herculano António Redondo, António Joaquim Cabecinha, Maria João
Mogarro, João Machado, Manuel Joaquim Pereira Abelha, Joaquim Augusto
Badalinho, Silvestre António catarro, José Francisco Curraleira, Maria saraiva,
António Vinagre, Bernardino barbas Pires, Ernesto Pinto Ângelo – sem eles não
teria sido escrito este livro.
À
memória de Germano Vidigal e José Adelino dos Santos, assassinados.
Que Farei Com Este Livro? (1980):
À Isabel cada vez mais.
Viagem
a Portugal
(1981)
A
quem me abriu portas e mostrou caminhos, à companheira constante que tantas
vezes disse. «Repara» - e também em lembrança de Almeida Garrett, mestre de
viajantes.
Memorial
do Convento (1982):
À
Isabel, porque nada perde ou repete, porque tudo cria e renova.
O
Ano da Morte de Ricardo Reis
(1984):
À
Isabel, outro livro, o mesmo sinal.
A
Jangada de Pedra
(1986)
Sem
dedicatória
A
Segunda Vida de Francisco de Assis
(1987):
Sem
dedicatória.
A
História do Cerco de Lisboa
(1989) é o primeiro livro em que aparece Pilar:
A
Pilar
A partir daqui todos os livros serão dedicados a Pilar.
Em As Pequenas Memórias (2006), pode ler-se:
A Pilar, que ainda não havia nascido e tanto tardou a chegar.
Todo
o ser humano é falível.
Felizmente!
Em
1944, José Saramago casa com a pintora Ilda Reis.
Entre 1954 e 1964, Isabel da Nóbrega viveu com o crítico João Gaspar Simões, que nunca perdoou ter sido trocado por um obscuro jornalista e tradutor.
A
relação com Saramago durará de 1970 a 1976.
Pelo
próprio Saramago fica a saber-se que Isabel da Nóbrega lhe abriu portas e novos
caminhos.
Completamente
despropositado e idiota existir quem defenda que foi Isabel da Nóbrega quem ensinou
José Saramago a escrever.
Antes
de Isabel, Saramago já era escritor.
O outro texto foi publicado a 28 de Junho de 2015:
«Na Cronobiografia de
José Saramago, preparada por Fernando Gómez Aguilera, pode ler-se:
1970
Começa a viver com a escritora Isabel da
Nóbrega, relação que durará até 1986.
Contudo, a
atracção de Saramago por Isabel, ou vice-versa, é anterior a 1970.
No índice Onomástico da Correspondência trocada
entre José Rodrigues Miguéis e José Saramago, há três entradas para Isabel da
Nóbrega.
Em nenhuma delas o seu nome aparece, mas
poderá concluir-se que se o pormenor é citado no Índice motivos
existirão, e a isso não será alheio o desejo do autor que assim fosse.
Vejamos:
Desculpe esta secura. Esta carta, embora
pequena, foi interrompida várias vezes por questões tão comezinhas que até
fazem raiva.
(Carta datada de 31 de Julho de 1961)
Leu já a «crítica» que o Gaspar Simões
fez ao seu livro (A Escola)? Tardou mas arrecadou, benza-o Deus! Por que bulas
é aquele homem crítico literário, e influente, é que eu não entendo. Ou o homem
é estúpido, ou não sabe ler. Ou será as duas coisas? Duma coisa estou eu certo:
é da maldade dele. Porque se aquilo não é maldade, então só vejo outra saída:
senilidade, que, como todos sabemos, às vezes refina na velhacaria.
(Carta datada de 4 de Novembro de 1961)
Uma carta minha, depois de todo este
tempo de silêncio, deve causar-lhe uma impressão de revenant. Em
certo sentido, essa impressão é justificada, poi tanta coisa se passou na minha
vida, nestes últimos meses, que eu próprio chego a pensar se não terei morrido
mesmo – e ressuscitado. Não estive doente, pelo menos no sentido usual da
palavra, não tive médico à cabeceira nem termómetro ao canto da boca, mas
estive prestes a destruir toda a minha futura, sabe-se lá de que maneira e com
que consequências. Para abreviar: saí de casa, deixei a família, atrás de uma
miragem em figura de mulher – que são sempre as piores miragens. Felizmente que
o bom-senso e a descoberta de que a razão verdadeira da minha vida estava,
afinal, naquilo que estaticamente deixara. Tudo se recompôs, é certo, mas
depois de tanto sofrimento (sofrido e infligido) que ainda me espanta agora
como estou são de espírito.
Com tal situação, que se arrastou durante meses, não prejudiquei apenas a minha vida particular e a dos meus. Os meus deveres na editora foram um pouco esquecidos, e devo à amizade e compreensão dos nossos amigos Canhão e Correia o não estar agora numa situação difícil.
(Carta datada de 19 de Setembro de 1962)
4 comentários:
É bem patente o carácter da criatura. Existem testemunhos claros
Acho que Saramago fazia demasiadas dedicatórias, Sammy. :)
Em relação à questão, tem todo o direito de apagar o que quiser, nas reedições. Cada livro é um livro e o tempo vai mudando o que sentimos pelas pessoas.
E prefiro que seja verdadeiro e não hipócrita.
Obrigado pela visita e pelo comentário, Rui Figueiredo.
Um abraço
Sim, Luís, o Saramago abusava das dedicatórias, muitas delas repetitivas, e, obviamente, tinha o direito de, nas reedições dos livros, apagar o que entendesse.
Mas nessa questão estou mais de acordo com a opinião do Jorge Amado, já para não referir a tristeza de Isabel da Nóbrega quando confidenciou a um jornalista aquele «não foi bonito.»
Segundo o que li, o que é possível conhecer, a Isabel da Nóbrega, desde o primeiro minuto acreditou que, um dia, Saramago seria Nobel da Literatura. E isso, mau grado os palermas andantes que por aí campeiam, não tem nada a ver com o «ensinar o labrego a comer à mesa.»
By the way: já reparou que estamos, novamente, em «mês de rr berbigões»?
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