A minha 1ª Feira do Livro foi no Rossio, meia dúzia de stands em redor das taças de água da praça
Estas são as recordações da Maria do Rosário Pedreira em crónica publicada no Mensagem de Lisboa:
«Enquanto
decorre mais uma Feira do Livro de Lisboa no Parque Eduardo VII – a 91.ª, se
não estou em erro –, olho para trás e sinto-me velha. Da primeira vez que fui à
Feira do Livro sem um adulto por perto, e com carta-branca para comprar o que
quisesse (dentro de um determinado orçamento, bem entendido), devia ter uns
catorze anos e usar meias pelo joelho.
Nesse
tempo, a feira estava instalada ao longo da Avenida da Liberdade, aproveitando
a sombra das suas árvores frondosas; e, às horas de menos clientela, quem estava
sem fazer nada nos pavilhões também não podia deitar o olho às montras das
boutiques caras, pela simples razão de que a alta costura, bem como os turistas
endinheirados e os novos-ricos, ainda não tinham chegado a estas bandas.
Lembro-me
de que planeara comprar os Contos da Montanha, de Miguel Torga
(«Mariana» é dos meus contos favoritos até hoje); e, por influência de uma
colega, que sabia que eu gostava de poesia, Pelo Sonho É Que
Vamos, de Sebastião da Gama, que ainda conservo naquela edição bonita e
limpinha da Ática. E recordo-me de que, não sabendo na altura quem publicava
esses livros, me bastou perguntar num stand qualquer (não era,
note-se, um balcão de informações) para logo um senhor muito solícito me
informar, a mim e à colega que me acompanhava, em que barraquinhas (com número
e tudo!) podíamos encontrar o que procurávamos.
Claro
que hoje o computador da APEL faz o mesmo serviço; e claro que hoje o mercado é
dez vezes maior, o que explica muita coisa. Mas a verdade é que quem vendia na
Feira do Livro de Lisboa na Avenida era gente que percebia da poda, geralmente
funcionários de livrarias que conheciam exaustivamente os catálogos das
editoras e que tão depressa eram capazes de indicar onde se podiam comprar os
livros de José Hermano Saraiva aos cavalheiros interessados em saber um pouco
mais da história do país como A Mulher na Sala e na Cozinha, de Laura
Santos, às raparigas casadoiras.
Sabiam
quais eram as editoras de Aquilino Ribeiro, David Mourão-Ferreira, Camilo ou
Eça, mas também (sou testemunha!) de um livro que ensinava a fazer kefir, numa
altura em que nem os iogurtes eram correntes em Portugal. A uma mulher popular,
de bata florida e avental, que uma vez perguntou ao meu lado num pavilhão se
tinham «algum livro que explicasse como se deitavam os canários», o vendedor,
sem desfazer o ar de surpresa, indicou imediatamente duas ou três editoras com
livros sobre a reprodução de aves.
Quando
escolhi a edição como modo de vida, vendi «atrás do balcão» na Feira do Livro,
já no Parque Eduardo VII, uma dúzia de anos, a ouvir perguntas e comentários, a
aconselhar e esclarecer, a topar os larápios e pedir-lhes os livros roubados de
volta, a aprender com leitores interessantes e interessados, e até a aturar
esquisitinhos com um vinco numa lombada, que precisavam de ver dez exemplares
do mesmo título até decidirem o que queriam levar.
Hoje
lamento ter desaparecido esta relação com os leitores, que era humana,
empática, próxima, cúmplice, e que foi substituída por um sistema impessoal em
que o cliente entra no pavilhão, escolhe, mete no cesto e paga na caixa, como
num supermercado, por vezes sem se cruzar com ninguém; ou então quem está
dentro do pavilhão pouco percebe dos livros que tem à sua guarda, muito menos
dos da concorrência, para poder responder às dúvidas dos fregueses…
O
barulho das luzes, os cartazes XPTO, a música de feira, a bonecada toda, podem
ser muito giros para quem sobe o parque com os jacarandás em flor e olha os
livros à direita e à esquerda. Mas os antigos profissionais que sabiam tudo
extinguiram-se: aqui há uns anos, o locutor de serviço à feira conseguiu dizer
que, no stand da Livros do Brasil, o Livro do Dia era «Os
Maias, de Camilo Castelo Branco». E, tendo-se ouvido um burburinho de
espanto subindo o parque como um rastilho prestes a explodir numa gargalhada
colectiva, o locutor voltou ao microfone para dizer: «Perdão.» Só que, quando
todos pensávamos que íamos poder respirar fundo, ele acrescentou: «Pede-se
alguém do pavilhão da Livros do Brasil que venha confirmar se Os Maias são
mesmo de Camilo Castelo Branco»…
1 comentário:
Ainda não havia o Google...
Hoje já há!!!!!
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