Cristina
Carvalho venceu o Prémio Miguel Torga com a obra Ingmar Bergman — O Caminho contra o Vento, publicada pela Relógio
D’Água.
«Mais
e melhor do que uma leitura atenta e objetiva sobre uma das personalidades mais
marcantes da história do cinema, esta ficção, redigida na primeira pessoa, ou
‘diário imaginário’, leva o leitor a entrar no vivido quotidiano e nas
recordações de um velho homem de génio.»,
refere a acta do júri.
E
ainda:
«Se
a identificação passional da escritora à sua personagem produz um sedutor
efeito de desdobramento, a literatura ganha neste jogo do mesmo e do outro, sem
que o auto-retrato de Bergman perca a sua verdade e a sua pujança».
Para
escrever o livro, agora distinguido pela Associação Portuguesa de Escritores,
Cristina Carvalho deslocou-se à Suécia, em particular à ilha de Fårö, e falou
com algumas das pessoas que mais de perto conheceram o realizador de Fanny e Alexander.
Cristina
de Carvalho, filha de Rómulo de Carvalho/António Gedeão e da escritora Natália
Nunes, apaixonou-se por Ingmar Bergman e voou para a ilha de Fårö
«que
tem um clima muito agreste. O vento fortíssimo arrasa qualquer intenção de
permanência. O solo é duro. O silêncio é estridente comos os gritos das aves
marinhas a cortar o céu. Eu estive aqui por uns dias. Numa pequena casa
alugada, no campo. Não encontrei, como vizinhança, uma única pessoa.»
«Pretendi,
ao escrever sobre Ingmar Bergman, informar todos quantos lerem este levro sobre
alguns pormenores de um ser artístico e invulgar que penso ter per4cebido.
Mergulhei, pois, nessa vida e só apareci à superfície do meu quotidiano para
respirar.
É
que mesmo, dedicadas à arte, nem todas as vidas, nem todas as existências são
artísticas. A dele foi.»
(Da
nota introdutória do livro.)
Gosto
dos filmes de Ingmar Bergman. O Woody Allen também. Com a diferença que Woody
Allen entende Bergman lindamente e eu perco-me amiúde.
Este
livro serviu-me de bengala e fiquei a entender um pouco melhor Bergman.
1.
«Apresento-me:
Sou um fóssil antiquíssimo agarrado às
paredes da Terra. Naufragado no miolo do mar. Só percebi a minha condição
quando cheguei a esta praia, quando deixei de me preocupar com a vida que tenho
e tive desde o dia do meu nascimento; só deixei de me preocupar com a vida e
com a morte quando estes pés calcaram pela primeira vez o areão grosso e os
meus olhos viram, se abriram e viram, e perceberam o peso das nuvens junto à
sua água primitiva. Complicado.
Sou um fóssil antiquíssimo agarrado para
sempre à rocha, destas que existem por aqui. Qualquer pessoa as pode ver e
apreciara. Têm formas esquisitas a despontar das águas quase paradas desta
praia onde a solidão é a perder de vista.
É isso que sou. Um fóssil de líquen.
E um fóssil, à primeira vista, não tem
muito que se lhe diga.»
2.
«Esquelético,
febril, doente, sem quase dar sinais vitais, nasci. O ambiente psicológico em
casa não podia ser pior e Karin, a minha mãe, na altura do parto, encontrava-se
no mais desolador estado depressivo.
Nasci
num domingo, o que já de si é um bom augúrio. Uma criança nascida num domingo,
segundo a tradição sueca, terá o dom de ver mais longe, de alcançar outro
horizonte. Além disso, o dia em que vim a este mundo, 14 de Julho, já era uma
data histórica, o Dia da Tomada da Bastilha, dia de protestos e revoltas no
mundo.
Deram-me o nome de Ernst Ingmar Bergman.»
3.
«Envelhecer.
É
difícil envelhecer. Dá.me muito trabalho. Tenho de me levantar todos os dias
muito cedo, logo que acordo, por volta das seis da manhºã, quando as babas da
madrugada ainda resvalam pelas vidraças e o vento não assobia. Não posso ficar
na cama acordado, pois começo com pensamentos sinistros a propósito de tudo e
de nada. Levanto-me.»
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