quinta-feira, 5 de setembro de 2024

E NÃO VAIS DE FIM DE SEMANA

Sombras chinesas falavam aos berros, contraditórias e desmoralizantes – já não davam mais lençóis ou só havia botas das pequenas, ou não distribuíam mais fardas nessa noite e amanhã estás lixado que tens de aparecer fardado, despacha-te que o quarteleiro está a dar a roupa da cama, desenrasca-te mas não podes dormir aí que essa é minha, se perderes o quico tens de pagar e não vais de fim de semana.

Deram-me duas mantas castanhas e esburacadas, um par de lençóis duros e molhados. Quando voltei ao beliche já a minha cama estava feita e ocupada por uma feroz sombra a ressonar. A caserna ia abrigar cerca de duzentos instruendos, uma companhia de instrução dividida por muros até meia altura e um corredor lateral percorria todo o casarão até aos lavabos e às cagadeiras. Em cada compartimento duas filas de camas em beliches de ferro, assentes no ladrilho encardido, o ferro pintado a descascar-se nas camas e nos cacifos, os colchões de palha endurecidos por gerações de guerreiros que ali tinham cultivado o sono.

Filipe Leandro Martins em O Pé na Paisagem 

1 comentário:

Sammy, o paquete disse...

O jornalista e escritor Filipe Leandro Martins morreu em 6 de Outubro de 2014. Tinha 69 anos.
Ainda do seu livro «Um Pé na Paisagem»
»São rostos cansados, insones, gente que grita, há quem ande à procura de receber ordens, há gente com fome, há gente que conta histórias, algumas delas horripilantes sobre o que se passa em África. Tocam clarim e alguém grita: “Esta é que é a puta da segunda companhia?” Da desorganização aparece a ordem de um quartel inteiro: “Depois começou a chamada, milhões de nomes a acertar com números, e a fome a roer. Depois firme. Sentido. Os braços esticados, dedos juntos, olhar em frente. Não mexe. O furriel deu um passo em direcção a nós, perna estendida, patada no chão. Deu meia volta, muito teso. Fez a continência a um homem franzino, enquanto a malta bichanava que era um alferes. O alferes fez um gesto mole em resposta, virámo-nos para a direita e lá fomos a caminho do refeitório, a toque de caixa.»