Sombras chinesas
falavam aos berros, contraditórias e desmoralizantes – já não davam mais
lençóis ou só havia botas das pequenas, ou não distribuíam mais fardas nessa
noite e amanhã estás lixado que tens de aparecer fardado, despacha-te que o
quarteleiro está a dar a roupa da cama, desenrasca-te mas não podes dormir aí
que essa é minha, se perderes o quico tens de pagar e não vais de fim de
semana.
Deram-me duas mantas
castanhas e esburacadas, um par de lençóis duros e molhados. Quando voltei ao
beliche já a minha cama estava feita e ocupada por uma feroz sombra a ressonar.
A caserna ia abrigar cerca de duzentos instruendos, uma companhia de instrução
dividida por muros até meia altura e um corredor lateral percorria todo o
casarão até aos lavabos e às cagadeiras. Em cada compartimento duas filas de
camas em beliches de ferro, assentes no ladrilho encardido, o ferro pintado a
descascar-se nas camas e nos cacifos, os colchões de palha endurecidos por
gerações de guerreiros que ali tinham cultivado o sono.
Filipe Leandro Martins em O Pé na Paisagem
1 comentário:
O jornalista e escritor Filipe Leandro Martins morreu em 6 de Outubro de 2014. Tinha 69 anos.
Ainda do seu livro «Um Pé na Paisagem»
»São rostos cansados, insones, gente que grita, há quem ande à procura de receber ordens, há gente com fome, há gente que conta histórias, algumas delas horripilantes sobre o que se passa em África. Tocam clarim e alguém grita: “Esta é que é a puta da segunda companhia?” Da desorganização aparece a ordem de um quartel inteiro: “Depois começou a chamada, milhões de nomes a acertar com números, e a fome a roer. Depois firme. Sentido. Os braços esticados, dedos juntos, olhar em frente. Não mexe. O furriel deu um passo em direcção a nós, perna estendida, patada no chão. Deu meia volta, muito teso. Fez a continência a um homem franzino, enquanto a malta bichanava que era um alferes. O alferes fez um gesto mole em resposta, virámo-nos para a direita e lá fomos a caminho do refeitório, a toque de caixa.»
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