quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

OLHAR AS CAPAS


Eles Vieram de Madrugada
Cartas para a Clandestinidade a Soeiro Pereira Gomes

Manuela Câncio Reis
Capa: José António Flores
Editorial Caminho, Lisboa, Julho de 1981

Eu não gostava das visitas do Alexandre. Não gostava que ele viesse falar contigo às ocultas, fechados ambos no teu escritório, depois de escondida a bicicleta no quintal. Adivinhava nesses misteriosos diálogos alguma coisa que cedo ou tarde te arrancaria a nossa casa. Mas gostava do Alexandre, da bondade que revelavam os seus olhos azuis, transparentes, e do modo compreensivo com que me falava quando o meu «burguesismo» estava em causa. Admirava o arrojo de vir assim, na sua bicicleta, em pleno meio-dia, bater-nos à porta, tão naturalmente como se a sua segurança, a sua vida não perigassem. E fazia-me pena o seu corpo magoado entalado no mesmo fato cinzento, curto e apertado, a palidez do seu rosto que a varíola um dia picou, a magoada ternura com que falava do filhito sempre doente. Dizias que ele passava fome e eu via que era verdade, no apetite com que partilhava o nosso almoço reforçado à pressa. Só que não gostava nada, também, que ele dissesse, trocando breve olhar contigo, que a vida na clandestinidade não era assim tão má como eu poderia julgar.

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