sexta-feira, 15 de maio de 2015

OLHAR AS CAPAS


Velha França

Roger Martin du Gard
Tradução de Alexandre Cabral
Capa: Paulo.Guilherme
Colecção O Livro de Bolso nº2
Portugália Editora, Lisboa, s/d

Sem dúvida, passará à reforma dentro de dois meses. Um outro chefe virá sentar-se aqui, fará o inventário, tomará posse de tudo. E ele, para onde irá ele?
Há trinta anos que usa a farda da companhia. Trinta anos sem uma censura; trinta anos sem um erro de escrita. E agora a reforma. Impossível escapar-lhe, tal como à morte.
Para trás fica a carreira que se acaba: uma existência de chefe de estação. Não é grande coisa; mas é uma existência que ele quis que fosse exemplar. Em trinta anos não concedeu a si próprio outra alegria que a de bem executar a sua tarefa; defendeu-se heroicamente contra todos os maus hábitos aos quais cede o comum dos homens. Nem tabaco nem amante. Nem mesmo uma esposa legítima (desde o momento que se detém uma parcela de poder, é preciso, para o exercer, parecer insensível, não dar o flanco mostrando algum sinal de fraqueza). As duas únicas distracções que se permitiu são de ordem intelectual: a colecção de selos e a biblioteca; entre dois comboios compulsava de boa vontade o álbum ou folheava um dos catorze volumes encadernados que lhe legara o padrinho, amador de teatro;: a obra completa de Scribe. Fora disto, tudo fora sacrificado a este ideal: ser um perfeito chefe de estação. E hoje, na véspera de abandonar tudo, de se enterrar vivo, a satisfação do dever cumprido não traz nenhuma compensação ao seu desespero.

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