Velha França
Roger Martin du
Gard
Tradução de
Alexandre Cabral
Capa:
Paulo.Guilherme
Colecção O Livro
de Bolso nº2
Portugália
Editora, Lisboa, s/d
Sem dúvida, passará à reforma dentro de dois meses. Um
outro chefe virá sentar-se aqui, fará o inventário, tomará posse de tudo. E
ele, para onde irá ele?
Há trinta anos que usa a farda da companhia. Trinta
anos sem uma censura; trinta anos sem um erro de escrita. E agora a reforma.
Impossível escapar-lhe, tal como à morte.
Para trás fica a carreira que se acaba: uma existência
de chefe de estação. Não é grande coisa; mas é uma existência que ele quis que
fosse exemplar. Em trinta anos não concedeu a si próprio outra alegria que a de
bem executar a sua tarefa; defendeu-se heroicamente contra todos os maus
hábitos aos quais cede o comum dos homens. Nem tabaco nem amante. Nem mesmo uma
esposa legítima (desde o momento que se detém uma parcela de poder, é preciso,
para o exercer, parecer insensível, não dar o flanco mostrando algum sinal de
fraqueza). As duas únicas distracções que se permitiu são de ordem intelectual:
a colecção de selos e a biblioteca; entre dois comboios compulsava de boa
vontade o álbum ou folheava um dos catorze volumes encadernados que lhe legara
o padrinho, amador de teatro;: a obra completa de Scribe. Fora disto, tudo fora
sacrificado a este ideal: ser um perfeito chefe de estação. E hoje, na véspera
de abandonar tudo, de se enterrar vivo, a satisfação do dever cumprido não traz
nenhuma compensação ao seu desespero.
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