As paixões
acontecem, não se explicam.
As reedições de
meus livros saem iguais às primeiras, apenas as gralhas vão em constante
aumento, Paloma, que os andou relendo para saber o que os personagens comem, me
informa que os erros gráficos se contam aos milhares. Tampouco jamais buli nas
dedicatórias, também elas datadas – mesmo em se tratando de pessoas a quem
deixei de estimar nem assim lhes retirei o nome da oferenda mesmo se retirei o
indivíduo do meu bem-querer. Refiro-me, é claro, às edições brasileiras, as
traduções fogem ao meu controlo. Lá estão os nomes todos, um a um – quando
escrevi o livro estimava os admirava fulano a quem o dediquei, se depois ele se
revelou calhorda, o nome permanece na dedicatória datando a escrita e a
ingenuidade do autor.
José Saramago
não teve este entendimento.
Desde que
conheceu Pilar, as novas edições dos livros, antes dedicados a Isabel da
Nóbrega, passam a não ter essa indicação.
Num lamento,
Isabel da Nóbrega disse que foi uma atitude que não era preciso tomar.
Segundo o
jornalista Luís Leal Miranda (jornal I de 26 de Junho de 2010), Saramago pronunciou-se
por várias vezes sobre o assunto, garantindo que as dedicatórias fizeram
sentido na altura em que essas edições foram publicadas. E essas edições, já
esgotadas, permanecem em sintonia com as inclinações amorosas da altura.
Num outro
registo, Saramago salientou que as dedicatórias permanecem nas edições
correspondentes ao tempo em que os livros foram escritos.
A história é
conhecida.
Depois de ler livros
de José Saramago, principalmente O Ano da Morte de Ricardo Reis, a
jornalista espanhola Maria del Pilar ficou como que encantada.
Senti que tinha de agradecer ao autor os livros que me
tinha dado a ler. E sobretudo dizer que tinha tratado os seus leitores como
seres inteligentes. Tinha-me sentido respeitada como leitora e quis
agradecer-lhe.
Veio até Lisboa
e conseguiu uma conversa com Saramago.
Tal como na
sinfonia de Beethoven, ambos terão sentido o destino a bater-lhes à porta.
Sabe-se o que
aconteceu.
Desde então, os
livros de José Saramago deixaram de ser dedicados à Isabel para passarem a ser
dedicados a Pilar.
Os dois primeiros livros de José Saramago, Terra do Pecado (1947), Os Poemas
Possíveis (1966), não têm qualquer dedicatória.
Mas em Provàvelmente Alegria já se revela uma leve indicação do que serão as dedicatórias futuras:
«Para tão grande amor tão curta a vida.»
Cheguei tarde ao encontro deste verso,
Outro o escreveu por mim, mas dele tomo,
Como rosa colhida que te ofereço.
Em Deste
Mundo e do Outro (1971), algo um pouco mais especifico:
Não se dirá aqui o nome. Mas da sua exaltação nasceu
este poema, do seu rigor esta autobiografia, da sua verdade esta meditação e
basta.
Mas é com o livro seguinte, A Bagagem do Viajante (1973) que o nome finalmente surge e que, por diversos livros, José Saramago manterá:
Dir-se-á desta vez aqui o nome. Pelas mesmas razões da
exaltação, do seu rigor e da sua verdade. E porque estes dias são mais
exaltantes ainda, mais rigorosos e de uma verdade que já é unidade
inultrapassável. Isabel.
Seguem-se:
As Opiniões que o DL Teve (1974):
Para a Isabel e para os meus amigos.
O Ano de 1993 (1975):
Para a Isabel. Este livro, o antes e o depois dele,
todos os passos e todos os gestos, todas as palavras ditas e as que estão por
dizer. Assim. Mesmo que o tempo não entenda já de coisas como esta.
Os Apontamentos (1976):
À Isabel, este livro e todos.
Aos trabalhadores do «Diário de Notícias» que foram o
meu apoio e a primeira justificação de quanto escrevi.
Manual de Pintura e Caligrafia (1976):
Para a Isabel, tão inseparável deste livro como da
minha vida.
Objecto Quase (1977):
Para a Isabel, porque me disse de que lado está a
vida.
A Noite
(1979)
À Luzia Maria Martins, que me achou capaz de escrever
esta peça.
À Isabel
Levantado do Chão (1980):
A João Domingos Serra e João Besuga, e também a
Mariana Amália Besuga, Elvira Besuga, Herculano António Redondo, António
Joaquim Cabecinha, Maria João Mogarro, João Machado, Manuel Joaquim Pereira
Abelha, Joaquim Augusto Badalinho, Silvestre António catarro, José Francisco
Curraleira, Maria saraiva, António Vinagre, Bernardino barbas Pires, Ernesto
Pinto Ângelo – sem eles não teria sido escrito este livro.
À memória de Germano Vidigal e José Adelino dos
Santos, assassinados.
Que Farei Com Este Livro? (1980):
À Isabel cada vez mais.
Viagem a Portugal (1981)
A quem me abriu portas e mostrou caminhos, à
companheira constante que tantas vezes disse. «Repara» - e também em lembrança
de Almeida Garrett, mestre de viajantes.
Memorial do Convento (1982):
À Isabel, porque nada perde ou repete, porque tudo
cria e renova.
O Ano da Morte
de Ricardo Reis (1984):
À Isabel, outro
livro, o mesmo sinal.
A Jangada de Pedra (1986)
Sem dedicatória
A Segunda Vida de Francisco de Assis (1987):
Sem dedicatória.
A História do Cerco de Lisboa (1989) é o primeiro livro em que aparece Pilar:
A Pilar
A partir daqui
todos os livros serão dedicados a Pilar.
Em As
Pequenas Memórias (2006), pode ler-se:
A Pilar, que ainda não havia nascido e tanto tardou a
chegar.
Todo o ser
humano é falível.
Felizmente!
Em 1944, José
Saramago casa com a pintora Ilda Reis.
Entre 1954 e
1964, Isabel da Nóbrega viveu com o crítico João Gaspar Simões, que nunca perdoou
ter sido trocado por um obscuro jornalista e tradutor.
A relação com
Saramago durará de 1970 a 1976.
Pelo próprio Saramago
fica a saber-se que Isabel da Nóbrega lhe abriu portas e novos caminhos.
Completamente despropositado
e idiota existir quem defenda que foi Isabel da Nóbrega quem ensinou José Saramago
a escrever.
Antes de Isabel, Saramago já era escritor.
Nota do editor: não foi possível encontrar uma fotografi de José
saramago com Isabel da Nóbrega.
Legenda:
a) José Saramago, a mulher Ilda Reis, a filha Violante.
b) Isabel da Nóbrega.
c) José Saramago e Pilar.